Alimentos que nos moldam: como a dieta pode mudar o nosso epigenoma Understand article
Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Somos o que comemos – literalmente. A dieta pode influenciar as ligeiras variações no nosso genoma que estão na base de várias doenças, como cancro e obesidade.
Quando nos vemos ao espelho podemos perguntar “como é que, tendo todas as células do corpo o mesmo ADN, os nossos órgãos têm aparências e funções tão diferentes? Com o progresso recente em epigenética, começamos agora a entender. Sabemos hoje que as células usam o seu material genético de várias maneiras: os genes são ligados e desligados, resultando no nível surpreendente de diferenciação tecidular no nosso corpo.
A epigenética descreve os processos celulares que determinam se um certo gene é transcrito e traduzido na proteína correspondente. A mensagem pode ser transmitida por pequenas modificações químicas, reversíveis, na cromatina (figura 1). Por exemplo, a adição de grupos acetilo (acetilação) a proteínas ligadas a ADN (histonas) aumenta a transcrição. Por outro lado, a adição de grupos metilo (metilação) a certas regiões reguladoras do próprio ADN reduz a transcrição. Estas modificações, em conjunto com outros mecanismos de regulação, são particularmente importantes durante o desenvolvimento embrionário – quando o momento exacto de activação da transcrição é crucial para assegurar uma diferenciação celular correcta – mas continua a ter efeito na vida adulta.
As modificações epigenéticas podem ocorrer como resposta a estímulos ambientais, sendo a dieta alimentar um dos mais importantes. Os mecanismos através dos quais a dieta afecta a epigenética não estão completamente esclarecidos, mas conhecem-se bem alguns exemplos.
Durante o inverno de 1944-45, a Holanda sofreu uma fome terrível como resultado da ocupação alemã, e o aporte energético da população caiu para menos de 1000 calorias por dia. As mulheres continuaram a conceber e a ter filhos nesses tempos difíceis, e essas crianças são hoje adultos com cerca de setenta anos. Estudos recentes revelaram que estes indivíduos – expostos a restrições calóricas no útero materno – têm uma taxa mais elevada de doenças crónicas, como diabetes, doença cardiovascular e obesidade, que os seus irmãos. Os primeiros meses de gravidez parecem ter tido o efeito mais importante no risco de doença.
Como é que algo que aconteceu muito antes do nascimento pode influenciar a vida 60 anos mais tarde? A resposta parece residir nas adaptações epigenéticas do feto como resposta às carências nutricionais a que esteve sujeito.
Não se sabe ainda quais são exactamente as alterações epigenéticas, mas descobriu-se que indivíduos expostos a fome no útero têm um menor grau de metilação de um gene implicado no metabolismo da insulina (o gene do factor de crescimento semelhante à insulina tipo II) do que os seus irmãos não expostos (Heijmans et al., 2008). Isto tem algumas implicações surpreendentes: apesar de teoricamente as alterações epigenéticas serem reversíveis, modificações úteis que tiveram lugar durante o desenvolvimento embrionário podem persistir na idade adulta, apesar de já não terem utilidade e poderem mesmo ser prejudiciais. Algumas destas modificações podem persistir por gerações, afectando os netos das mulheres expostas (Painter et al., 2008).
Os efeitos da dieta alimentar durante os primeiros estádios de vida na epigenética são também claramente visíveis entre as abelhas. O que diferencia abelhas obreiras, estéreis, da rainha, fértil, não é a genética, mas sim a dieta no estado larvar (figura 2). As larvas destinadas a rainha são alimentadas exclusivamente de geleia real, uma substância segregada pelas abelhas obreiras, que activa o programa genético responsável pela fertilidade da rainha.
Outro exemplo surpreendente da influência da nutrição na epigenética durante o desenvolvimento foi encontrado em ratinhos. Indivíduos com um gene agouti activo têm pêlo amarelo e propensão para a obesidade. No entanto, este gene pode ser desligado por metilação de ADN. Se uma ratinha agouti grávida receber suplemento dietético dador de grupos metilo – como ácido fólico ou colina – os genes agouti do bebé ficam metilados e consequentemente inactivos. Estes bebés ainda possuem os genes agouti, mas não manifestam o fenótipo agouti: têm pêlo castanho e não têm tendência acrescida para obesidade (figura 3).
A ingestão insuficiente de ácido fólico está também implicada em certas anomalias de desenvolvimento em humanos, como espinha bífida e outros defeitos no desenvolvimento do tubo neural. Para evitar esses defeitos é muito usual prescrever suplementos de ácido fólico a mulheres grávidas ou que pretendam engravidar (ver Hayes et al., 2009).
E sobre o efeito da dieta na epigenética em indivíduos adultos? Muitos componentes dos alimentos têm a capacidade de causar modificações epigenéticas em seres humanos. Por exemplo, bróculos e outros vegetais crucíferos contêm isotiocianatos, que podem aumentar a acetilação de histonas. A soja, por outo lado, é uma fonte da isoflavona genisteína, que, segundo se crê, diminui a metilação de ADN em certos genes. O polifenol epigalocatequina-3-galato, presente em chá verde, tem várias funções biológicas, incluindo a inibição de metilação de ADN. A curcumina, presente em açafrão-da-índia (Curcuma longa), pode ter múltiplos efeitos na activação de genes, visto que inibe a metilação de ADN e modula a acetilação de histonas. A figura ilustra outros exemplos de moléculas epigeneticamente activas.
A maioria dos dados coligidos sobre estes compostos foram obtidos por experiências in vitro. Testaram-se em linhas celulares os compostos purificados e mediram-se os seus efeitos em alvos epigenéticos. Está ainda por provar que a ingestão de alimentos ricos nestas substâncias tem os mesmos efeitos que os observados em modelos celulares (Gerhauser, 2013).
No entanto, estudos epidemiológicos sugerem que populações que consomem elevadas quantidades de alguns destes alimentos parecem ser menos propensas a certas doenças (Siddiqui et al., 2007). Mas muitos destes compostos têm outras funções biológicas além dos efeitos epigenéticos. Um alimento pode conter múltiplas moléculas biologicamente activas, tornando difícil estabelecer uma correlação directa entre actividade epigenética e efeito global no organismo. Finalmente, todos os alimentos sofrem várias transformações no tracto digestivo, pelo que não se sabe que percentagem de composto activo atinge realmente o alvo molecular.
Como resultado dos seus efeitos alargados, as modificações epigenéticas estão envolvidas no desenvolvimento de muitas doenças, incluindo alguns cancros e doenças neurológicas. As células tornam-se malignas, ou cancerosas, quando modificações epigenéticas desactivam genes supressores de tumores, genes que evitam proliferação celular excessiva (Esteller, 2007). Sendo estas modificações epigenéticas reversíveis, há grande interesse em encontrar moléculas – especialmente fontes dietéticas – que possam reverter estas alterações prejudiciais e evitar o desenvolvimento de tumores.
Todos sabemos que uma dieta rica em fruta e vegetais é saudável, mas há cada vez mais evidências de que pode ser muito mais do que isso e ter implicações muito significativas na saúde a longo prazo e na esperança de vida.
References
- Esteller M (2007) Epigenetic gene silencing in cancer: the DNA hypermethylome.Human Molecular Genetics 16(1): R50-R59. doi:10.1093/hmg/ddm018
- Gerhauser C (2013) Cancer chemoprevention and nutri-epigenetics: state of the art and future challenges. Topics in Current Chemistry 329: 73-132. doi:10.1007/128_2012_360
- Hayes E, Maul H, Freerksen N (2009) Folic acid: why school students need to know about it. Science in School 13: 59-64.
- Heijmans BT et al. (2008) Persistent epigenetic differences associated with prenatal exposure to famine in humans. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA 105: 17046-17049. doi:10.1073/pnas.0806560105
- Painter R et al. (2008) Transgenerational effects of prenatal exposure to the Dutch famine on neonatal adiposity and health in later life. BJOG: An International Journal of Obstetrics & Gynaecology 115: 1243-1249. doi:10.1111/j.1471-0528.2008.01822.x
- Siddiqui IA et al. (2007) Tea beverage in chemoprevention and chemotherapy of prostate cancer. Acta Pharmacol Sinica 28(9): 1392-1408. doi:10.1111/j.1745-7254.2007.00693.x
Resources
- Para uma introdução simples à epigenética, ver:
- McVittie B (2006) Epigénetica. Science in School 2: 62-64.
- Para aprender mais sobre nutrição e epigenética, ver:
- Link A et al. (2010) Cancer chemoprevention by dietary polyphenols: Promising role for epigenetics. Biochemical Pharmacology 80(12): 1771- 1792. doi:10.1016/j.bcp.2010.06.036
- O Learn Genetics website.
- Para mais informação sobre o efeito da fome na Holanda na idade adulta e metilação de genes, ver:
- Roseboom TJ et al. (2001) Effects of prenatal exposure to the Dutch famine on adult disease in later life: an overview. Molecular and Cellular Endocrinology 185: 93-8. doi:10.1016/S0303-7207(01)00721-3
- O site da Universidade de Leiden
- Para uma explicação – fascinante e de fácil leitura – da investigação recente em abelhas e epigenética, ver:
- Chittka A, Chittka L (2010) Epigenetics of royalty. PLOS Biology 8(11): e1000532. doi:10.1371/journal.pbio.1000532
- PLoS Biology é uma revista de acesso aberto, de modo que este artigo está disponível online gratuitamente
- Para mais informação sobre epigenética de abelhas.
- Para uma visão simples de epigenética e o gene agouti em ratinhos, ver:
- Adams J (2008) Obesity, epigenetics, and gene regulation. Nature Education 1(1).
- To learn how hormone levels during pregnancy can affect the sex of the child, see:
- Notman (2012) Intersexo: caindo fora da norma. Science in School 23: 48-52.
Review
O artigo estabelece uma ligação entre dieta durante a gravidez e alterações na expressão de genes devidas a mecanismos de acetilação de histonas (aumento da transcrição) e metilação (redução da transcrição). Usando exemplos em humanos, ratinhos e abelhas, o artigo mostra que a falta de certos nutrientes pode afectar o desenvolvimento de determinadas características em crianças. Além disso, trata de efeitos da dieta na epigenética na idade adulta, indicando uma lista de alimentos que se sabe terem efeito positivo na saúde.
Este artigo pode ser usado como base para uma discussão sobre escolhas dietéticas saudáveis em comparação com junk food, de modo a consciencializar os alunos para as possíveis consequências do seu comportamento alimentar.
Este artigo pode ser usado numa aula de revisão sobre tópicos básicos de expressão genética.
Potenciais questões poderão incluir:
- Qual a estrutura e função das histonas?
- Quais os principais mecanismos de regulação da expressão genética?
- Como é que o genótipo influencia o fenótipo?
- Como é que as condições ambientais (internas ou externas) influenciam a expressão genética?
- A diabetes é um bom exemplo de uma doença ligada à dieta. Pode descrever as causas da diabetes?
Monica Menesini, Liceo Scientifico Vallisneri Lucca, Itália