A nova definição de cristais – ou como ganhar um Prémio Nobel Understand article
Traduzido por Ana Luísa Carvalho. Porque razão é a simetria tão fundamental para a compreensão da natureza dos cristais? E porque razão a simetria "proibida" alterou a definição do que é um cristal?
O estudo de materiais cristalinos é uma das mais poderosas técnicas analíticas disponíveis para os cientistas. Se é possível crescer um cristal único de um sal, molécula, proteína ou mesmo de um vírus completo, então, é normalmente possível identificar não só a sua conectividade (que átomos estão ligados ao quê), mas também os seus comprimentos e ângulos de ligação e a sua conformação molecular (a forma adoptada por uma molécula flexível). A partir do estudo de cristais de proteína é possível elucidar como funciona essa proteína num organismo e onde se encontram os seus sítios activos.
Os cristais possuem uma beleza inerente, graças, em grande parte, à sua simetria. Por convenção, todos os cristais possuem uma propriedade em comum: simetria translacional em três dimensões. De facto, foi assim que os cristais foram originalmente descritos – como materiais onde os átomos, moléculas ou iões constituintes se encontram empacotados num padrão tridimensional repetitivo e com uma ordem regular. A simetria translacional é melhor ilustrada em duas dimensões imaginando papel de parede estampado, que geralmente possui esta propriedade – se pendurado correctamente. Isto significa que podemos desenhar um paralelogramo (mosaico ou azulejo) contendo um determinado padrão e, dispondo esse mosaico em duas direções, obtemos o padrão estilo papel de parede (figura 1).
De forma semelhante, podemos obter a estrutura cristalina 3D de uma “caixa” de átomos, por repetição da caixa ao longo dos eixos x, y, e z. A caixa que se repete é designada por célula unitária (figura 2).
Simetria em cristais e quasi-periodicidade
Os cristais que possuem simetria translacional em três dimensões são formalmente designados de cristais periódicos, porque as estruturas possuem um padrão que se repete a uma determinada distância ou período. No entanto, em 2011, o Prémio Nobel da Química foi atribuído a Dan Shechtman pela sua descoberta dos cristais quasi-periódicos. Estes cristais não são periódicos – não possuem simetria translacional – mas, ainda assim, possuem ordem local. Possuem a mesma unidade repetitiva em diferentes pontos do cristal, mas não a intervalos periódicos. O reconhecimento recente deste trabalho é um triunfo para a perseverança de Shechtman, ultrapassando a ridicularização que recebeu quando primeiramente publicou o seu trabalho (Shechtman et al., 1984). Mas, então, porque era esta ideia tão controversa? Porque, aparentemente, estes cristais possuem simetrias que são proibidas em sistemas periódicos.
Além da simetria translacional, a maior parte das estruturas cristalinas periódicas possui simetria adicional, tal como simetria de espelho. Por exemplo, observando a célula unitária do cloreto de sódio, podemos ver que cada metade corresponde à imagem no espelho da outra metade (figura 3; ver também figura 4).
A simetria rotacional é igualmente possível. Isto significa que se pegarmos num objecto e o rodarmos em torno de um ponto central por um determinado número de graus, a sua imagem permanecerá inalterada (figura 4).
Quando um padrão ou cristal possuem simetria translacional e esta é periódica, as simetrias rotacionais de grau 2, de grau 3, de grau 4 e de grau 6 são todas possíveis. No entanto, o mesmo não acontece com as simetrias de grau 5, ou 7 ou superior. Isto acontece porque é possível, no espaço 2D, empacotar triângulos, rectângulos, quadrados ou hexágonos sem deixar espaços vazios entre eles. O mesmo não é possível usando pentágonos, heptágonos ou polígonos superiores (figura 5).
Como são analisados os cristais?
Já muitos estudantes terão realizado a famosa experiência de Young, na qual se faz passar um feixe de laser através de duas fendas numa grelha de difração, sendo o espaço entre as fendas comparável ao comprimento de onda do laser. Pode observar-se um padrão de interferência, resultante das interferências construtivas e destrutivas entre as ondas difratadas pelas fendas (figura 6).
Os cristais são estudados usando uma técnica conhecida por difração de raios-X, cuja teoria foi extensamente desenvolvida em 1913 por William Henry Bragg e pelo seu filho William Lawrence Bragg, que, pelo seu trabalho, partilharam o Prémio Nobel da Física em 1915. Numa experiência de difração, os cristais comportam-se como uma complexa grelha de difração, onde as “fendas” correspondem a camadas de átomos no cristal (figura 7).
Para que ocorra difração, o comprimento de onda da radiação que interage com o cristal tem que ser comparável à distância entre os átomos.
Frequentemente, em laboratórios, a radiação usada é a radiação X (cujos raios são dispersos pelos eletrões nos átomos), mas existem outras possibilidades, como eletrões ou neutrõesw1.
O cristal é montado no percurso de um feixe de raios-X com um comprimento de onda selecionado, e o padrão de difração é registado à medida que o cristal é rodado em torno de um eixo. Para as camadas de átomos posicionadas a um ângulo θ do feixe de raios-X, os raios dispersos encontrar-se-ão em fase (i.e. possuem interferência construtiva) se, e só se, a diferença de percurso entre dois raios dispersos for igual a um número inteiro de comprimentos de onda, resultando num pico de difração mensurável. Isto é conhecido como a Lei de Bragg e a sua dedução é ilustrada na figura 8.
À medida que o cristal é rodado, diferentes camadas de átomos irão satisfazer a Lei de Bragg e produzir interferência construtiva. Isto resulta num pico de difração com uma intensidade relacionada com o número e tipo de átomos da camada, como é, por exemplo, mostrado na figura 9. Uma experiência de difração típica irá medir de milhares a milhões de reflexões, e uma análise cuidada permitirá obter a estrutura exata do cristal.
O padrão de difração produzido por um cristal também possui simetria e esta está relacionada com a simetria do cristal. Os padrões de difração de cristais quasi-periódicos possuem simetria que é proibida em cristais periódicos, tal como a rotação de grau 5 ou de grau 10 (figura 10).
As estruturas destes cristais invulgares estão relacionadas com os mosaicos tipo Penrose (figura 11). Estes são estruturas que possuem simetria local, mas não possuem simetria translacional.
A investigação nesta área levou a uma alteração na definição de um cristal pela União Internacional de Cristalografia em 1991. Os cristais já não têm necessariamente que conter simetria translacional: um material é um cristal se apresentar um padrão de difração bem definido, o que é uma certeza em cristais quasi-periódicos.
No entanto, é pouco provável que os programas escolares venham a ser alterados em breve para incluírem esta nova definição. São poucos os materiais quasi-periódicos já descobertos, e o primeiro cristal quasi-periódico natural – icosaedrite (Al63Cu24Fe13), um material provavelmente originário de um meteorito e descoberto no rio Khatyrka no leste da Rússia – foi apenas identificado em 2009 (Bindi L et al., 2009). Embora mais exemplos tenham sido criados posteriormente, estando os quasi-cristais presentes em muitas ligas metálicas e alguns polímeros, os cristais que os estudantes crescem em laboratório pouco provavelmente são alguma coisa que não seja periódica e, apesar das suas características invulgares e interessantes, os quasi-cristais não possuem qualquer aplicação prática – ainda.
References
- Bindi L et al. (2009) Natural Quasicrystals. Science 324(5932): 1306-1309. doi: 10.1126/science.1170827
- Shechtman D et al. (1984) Metallic phase with long-range orientational order and no translational symmetry. Physical Review Letters, 53(20): 1951-1953. doi: 10.1103/PhysRevLett.53.1951
Web References
- w1 – A análise por difração é possível não só com raios-X, mas também usando neutrões e electrões. Isto é exemplificado por três membros do EIROforum, entidade responsável pela publicação da Science in School.
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O European Synchrotron Radiation Facility a instituição europeia de radiação de sincrotrão, usa os padrões de difração de raios-X de elevada energia para a análise de materiais. As experiências realizadas no ESRF têm aplicação não só em ciência dos materiais, mas também em biologia, medicina, física, química, ciência ambiental e até paleontologia e património cultural.
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O Institut Laue-Langevin opera a mais intensa fonte estável de neutrões do mundo. Os estudos de difração com feixes de neutrões são usados na investigação em física da matéria condensada, química, biologia, física nuclear e ciência de materiais.
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O European X-ray Free Electron Laser ou laser de raios-X de electrões livres), com início de operação programado para 2015, usará flashes de raios-X para examinar amostras. A ideia básica por trás de uma experiência típica é simples: iluminar uma amostra com ondas intensas de raios-X e contar os fotões que são dispersos pela amostra em diferentes direções. O resultado é um padrão de difração.
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Resources
- Cornuéjols D (2009) Biological crystals: at the interface between physics, chemistry and biology. Science in School 11: 70-76.
- Para aprender como crescer cristais de proteína na escola, consultar:
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Blattmann B, Sticher P (2009) Growing crystals from protein. Science in School 11: 30-36.
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- Mais informação sobre Dan Shechtman e a sua descoberta.
- Howes L (2011) Quasicrystals scoop prize. Chemistry World 8(11): 38-41.
- Para uma entrevista com o matemático e investigador em simetria Marcus de Sautoy, consultar:
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Hayes E (2012) Finding maths where you least expect it: interview with Marcus du Sautoy. Science in School 23: 6-11.
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Review
Tal como escreve a autora, “os cristais possuem uma beleza inerente”, mas os alunos frequentemente encaram a cristalografia como um assunto difícil e entediante. Para estes estudantes e para os seus professores, o artigo da Mairi Haddow é um material de apoio precioso para uma abordagem nova e inspiradora aos cristais. Neste artigo de leitura agradável, o tópico é explicado numa linguagem clara e precisa, associado a imagens belas e impressionantes (por exemplo, a que se refere ao papel de parede e à simetria translacional).
O artigo pode ser usado no âmbito dos planos curriculares de química (estruturas de sólidos), física (difração, ondas, estrutura atómica), ciências da terra (mineralogia, cristalografia) e matemática (simetria). Estes temas, associados a história da arte (azulejaria), oferecem diferentes oportunidades interdisciplinares.
Como questões para avaliação da compreensão incluem-se:
- A partir do artigo pode deduzir que é possível crescer um cristal de:
- Um sal
- Uma molécula
- Um vírus
- Uma bactéria
- Com quais dos seguintes NÃO é possível realizar uma análise por difração?
- Raios-X
- Pndas de rádio
- Neutrões
- Laser de electrões livres
- Com quais dos seguintes tipos de mosaicos é possível cobrir completamente uma superfície 2D?
- Triângulos, quadrados, pentágonos e hexágonos
- Triângulos, rectângulos e heptágonos
- Triângulos, quadrados, rectângulos e hexágonos
- Quadrados, rectângulos e pentágonos
Giulia Realdon, Itália