Magnetismo: o desenvolvimento de um novo surfatante Understand article

Traduzido por Duarte Nuno Januário. O aumento da poluição resultante da crescente utilização de detergentes e outros surfatantes é uma preocupação. Uma resposta a este problema: surfatantes que podem ser recolhidos e reutilizados simplesmente ligando e desligando um campo magnético.

Imagem cortesia de:
Roadsidepictures; fonte da
imagem: Flickr
As lavagens automáticas
consomem muito detergente
.
Imagem cortesia de: swisscan;
fonte da imagem: Flickr

Estima-se que cada pessoa na EU utilize cerca de 10 kg de detergentes anualmente. Isto inclui não apenas as barras de sabão, champô, pasta de dentes, detergentes em pó e produtos de limpeza domésticos que nos são familiares, mas também os compostos do mesmo tipo que são encontrados em combustíveis, produtos farmacêuticos e até em comidas ou cerveja. Na indústria são utilizadas grandes quantidades de detergentes, por exemplo, em lavandarias, na preparação de tecidos e couro para a tinturaria, nas lavagens de automóveis e na limpeza e desinfecção hospitalar.

Uma vez cumprida a sua função de limpeza, os resíduos são simplesmente despejados no sistema de esgoto e eventualmente libertados no meio ambiente. Imagine se em vez disso os resíduos pudessem ser recuperados. Este artigo descreve algumas das mais recentes investigações no domínio dos detergentes recicláveis e como podem ser estudados utilizando métodos avançados.

Sabões, detergentes e surfatantes

Figura 1: Dodecanoato de
sódio, C11H23COONa+,
mostrando a longa cauda –
cadeia hidrofóbica, e a cabeça
– grupo carboxilato. Clique na

Imagem cortesia de:
Universidade de Bristol
Figura 2: Uma micela é a
estrutura básica necessária
para que os detergentes
limpem manchas de gordura:
A gordura pode ser
incorporada na parte central
oleosa (A) da micela. As
caudas hidrofóbicas (B)
interagem com o óleo e a
gordura (A), enquanto as
cabeças hidrofílicas (C) se
ligam através de pontes de
hidrogénio à solução aquosa
(D)
.
Imagem cortesia de: Mariana
Ruiz Villarreal; fonte da
imagem: Wikimedia Commons

Os surfatantes são compostos que diminuem a tensão superficial dos líquidos, tornando-os adequados para um maior número de aplicações – como agentes emulsionantes, espumantes, molhantes e dispersantes, por exemplo. Os surfatantes que são usados na limpeza são conhecidos como detergentes. O mais simples e mais antigo de todos é o sabão, que já era utilizado na Babilónia há quase 5000 anos atrás; de facto, o fabrico de sabão é uma das mais antigas indústrias químicas.

O dodecanoato de sódio (figura 1) demonstra a estrutura geral de todos os surfatantes: uma parte da molécula é hidrofílica, o que significa que será solúvel em água devido à sua “cabeça” carregada, e o resto da molécula é uma “cauda” gordurosa hidrofóbica. A habilidade do detergente para dissolver a água deve-se a um balanço de forças intermoleculares. A cabeça é um ião carboxilato carregado negativamente, capaz de estabelecer ligações de hidrogénio com a água, enquanto a cauda hidrofóbica não se liga ao hidrogénio porque é uma longa cadeia alquílica, que não conta com elementos electronegativos. Isto explica porque os surfatantes formam agregados conhecidos por micelas (figura 2), que são essenciais para a acção de detergentes.

O detergente mais antigo:
sabão

Imagem cortesia de:
schoeband; fonte da imagem:
Flickr

As duas extremidades do detergente também se comportam de forma diferente, por exemplo, com manchas de gordura. As caudas hidrofóbicas interagem com a gordura, enquanto as cabeças hidrofílicas atraem moléculas de água através de ligações de hidrogénio. Após alguma agitação, a gordura liberta-se do material a que se encontrava ligada, ficando confinada às gotas de detergente; as superfícies das gotas consistem em cabeças hidrofílicas solúveis em água. A gordura é assim removida do material e confinada na água pelas micelas (figura 2).

Desenvolvimento de surfatantes magnéticos

Um grupo de investigadores da Universidade de Bristol, Reino Unido – incluindo dois dos autores deste artigo – encontra-se neste momento a trabalhar num novo tipo de surfatantes: os surfatantes magnéticos, que respondem à acção de campos magnéticos devido à presença de átomos de ferro nas suas cabeças (figuras 3 e 4). Estes surfatantes podem ter aplicações ambientais e médicas.

Figura 3: Desenvolvimento
de um surfatante magnético
a partir de um surfatante
convencional.
A) A estrutura do brometo de
dodeciltrimetilamónio, um
surfatante não-magnético
que o grupo de Bristol
utilizou como um dos
materiais de partida. Clique
na imagem para ampliar
.

Como foram desenvolvidos estes surfatantes magnéticos? E como se prova que se produziu realmente um surfatante magnético?

Para começar, os investigadores de Bristol utilizaram um surfatante conhecido e substituíram o grupo bromo por um grupo contendo ferro (figura 3). Depois demonstraram que o composto ainda atuava como um surfatante: era capaz de diminuir a tensão superficial de líquidos, permitia-lhes espumar. Depois, o grupo demonstrou que o ferro na cabeça hidrofílica lhe havia conferido a desejada actividade magnética.

Para entender realmente o que se estava a passar, contudo, os investigadores precisavam de observar com mais atenção o seu composto. Por exemplo, embora a sua capacidade para diminuir a tensão superficial fosse um indicador de que haveria formação de micelas, tal não era uma prova conclusiva. Para testar isto, os investigadores utilizaram uma técnica especial super-sensível designada dispersão de neutrões de pequeno ângulo (SANS – small angle neutron scattering).

B) A estrutura do
triclorobromoferrato de
dodeciltrimetilamónio, um
dos surfatantes magnéticos
em que o grupo de Bristol
está a trabalhar. Clique na
imagem para ampliar
.
Figura 4: Os efeitos de um íman em soluções de surfatante normal (esquerda, com adição de corante para mostrar as duas camadas) e magnético (direita). A presença de ferro no surfatante magnético explica a atração observada na direita.
Imagem cortesia de: Universidade de Bristol

Os surfatantes podem ser analisados utilizando a dispersão de neutrões de pequeno ângulo

A SANS é uma técnica excelente para investigar estruturas entre 0.1 e 100 nm de tamanho. Perfeita, então, para encontrar e caracterizar micelas de surfatante e gotículas de emulsões, que têm tipicamente entre 2 e 10 nm de diâmetro. A SANS é também muito utilizada para investigar materiais macios (ex.: polímeros, colóides e cristais líquidos), moléculas biológicas (ex.: DNA e proteínas em solução) e matéria condensada (ex: agregados de átomos em ligas metálicas e redes de linhas de fluxo em supra-condutores).

Numa experiência SANS, aponta-se um feixe de neutrões de grande intensidade para a amostra com interesse de estudo (figura 5); este feixe pode ser visto como uma corrente de partículas livres viajando na mesma direção e com a mesma velocidade. Os neutrões livres do feixe interagem com os núcleos dos átomos da amostra, ocorrendo dispersão do feixe. A dispersão dos neutrões do feixe é então registada por um detetor sensível à sua posição. Os dados resultantes – a intensidade dos neutrões dispersados pelas diferentes áreas da amostra – são usados em modelos matemáticos que permitem determinar a forma, o tamanho e a carga dos objetos dispersantes na amostra. Para uma explicação mais detalhada da análise SANS, pode descarregar Material de apoio do site Science in Schoolw1.

Figura 5: Representação esquemática de uma experiência de dispersão de neutrões de pequeno ângulo. São mostrados os vetores-onda incidente ki e dispersado ks, conjuntamente com o vetor dispersão q, que se encontra no plano do detetor.
Imagem cortesia de: ILL

Para a sua análise SANS, o grupo de Bristol formou equipa com cientistas do Instituto Laue-Langevin (ILL; ver caixa) em Grenoble, França. Apesar de no novo composto já terem sido observadas propriedades surfatantes, como por exemplo a redução da tensão superficial, os resultados da SANS forneceram as primeiras provas conclusivas de que ocorre também formação de micelas.

Para além disso, os cientistas mostraram que as micelas formadas eram pequenas, esféricas e não carregadas. Isto é importante porque o comportamento de um surfatante, bem como as suas aplicações, são afetados pelas características das micelas e das gotículas na emulsão que forma com diferentes líquidos. Com esta informação, os cientistas conseguem prever – e no futuro investigar – o comportamento do seu surfatante em condições diversas.

Utilizando a SANS, a equipa foi também capaz de testar se em solução as partículas de ferro se dissociam do surfatante, resultando efetivamente numa mistura de surfatantes não magnéticos e partículas magnéticas dissolvidas, ou se os dois componentes permanecem ligados, formando micelas genuinamente magnéticas. Os resultados sugerem que os compostos de ferro se encontravam firmemente integrados nas micelas. Isto abriu a possibilidade de criar emulsões magnéticas com possíveis aplicações médicas (ver em baixo).

Os surfatantes magnéticos têm aplicações médicas e ambientais

O derrame de petróleo
Deepwater Horizon no Golfo
do México, conforme visto do
espaço em 2010. Este foi o
maior derrame na história da
indústria petrolífera. Foram
usados detergentes para
tentar dispersar o petróleo
.
Imagem cortesia de: NASA

Os surfatantes magnéticos podem parecer uma ideia estranha, no entanto têm algumas aplicações muito práticas. Por exemplo, muitos surfatantes não são biodegradáveis. Se fossem usados surfatantes magnéticos, estes poderiam ser recuperados das águas residuais, utilizando campos magnéticos, e reciclados, resultando numa diminuição dos níveis de detergentes no ambiente.

O efeito de um campo
magnético numa emulsão
magnética: o íman arrasta a
gotícula para cima, contra a
ação da gravidade. Assim que
o íman é removido (imagem
5) a gravidade obriga a
gotícula a descer novamente
o tubo. Clique na imagem
para ampliar
.
Imagem previamente publicada
em Brown et al. (2012a).
Reproduzida com autorização
da The Royal Society of
Chemistry
.

Para além disso, atualmente, quando ocorre um derrame petrolífero no mar, são usados surfatantes para reduzir o petróleo a gotículas em emulsão, para que possam difundir-se no oceano, permanecendo assim o seu potencial enquanto agente poluente. Se fossem usados surfatantes magnéticos, as emulsões resultantes poderiam ser recolhidas, removendo-se o petróleo e os surfatantes da água.

Os surfatantes magnéticos podem até ter aplicações médicas. A administração localizada de fármacos tem como objetivo o seu fornecimento apenas às células específicas onde são necessários, prevenindo o desperdício de compostos farmacêuticos valiosos e minimizando efeitos secundários. A Figura 6 mostra como as gotículas da emulsão (coradas de azul), formadas a partir de surfatantes magnéticos, podem ser manipuladas com um pequeno íman, de forma suficientemente eficiente para contrariar a corrente sanguínea no interior do organismo. Estas emulsões poderiam conter medicação da mesma forma que as que já são utilizadas atualmente, podendo no entanto ser conduzidas diretamente para a localização correta utilizando um íman.

Perspetivas futuras

Imagem cortesia de: Gustavo
(lu7frb); fonte da imagem:
Flickr

Os surfatantes magnéticos não são o único novo tipo de surfatantes que estão a ser desenvolvidos em Bristol. A equipa de investigação encontra-se também a estudar surfatantes que podem ser ativados ou desativados através de variações de luz, pH, temperatura, pressão ou concentração de dióxido de carbono. O desafio atual é descobrir como sintetizar estes compostos em grande escala, de forma a torná-los baratos e eficientes.

 

More about ILL

As experiências utilizando SANS requerem feixes intensos de neutrões, que apenas podem ser produzidos em grandes estruturas. Na Europa, são produzidos em laboratórios apoiados e geridos através de colaborações intergovernamentais, como o ISISw2, no Reino Unido, e o Instituto Laue-Langevin (ILL)w3, em França.

O ILL é um centro de pesquisa internacional que opera a fonte estável de neutrões mais intensa do mundo. Todos os anos, são realizadas mais de 800 experiências por cerca de 2000 cientistas provenientes de todo o mundo. A pesquisa foca-se em diversos campos da ciência: física da matéria condensada, química, biologia, física nuclear e ciência dos materiais.

O ILL é um membro do EIROforumw4, que publica a Science in School.

 


References

Web References

  • w1 – Para saber mais sobre a análise SANS, descarregue o material de apoio do site da Science in School, na forma de ficheiros Word ou PDF.
  • w2 – O ISIS é um centro de pesquisa líder em termos mundiais para as ciências físicas e da vida, que utiliza um conjunto de instrumentos envolvendo neutrões e muões, para compreender as propriedades dos materiais à escala atómica. Uma comunidade de mais de 2000 cientistas utiliza as instalações para fazer pesquisa em assuntos que vão da energia limpa e ambiente, farmacêuticos e cuidados médicos, até à nanotecnologia, engenharia dos materiais e tecnologias de informação.
  • w3 – Mais informação sobre o ILL.
  • w4 – O EIROforum é uma colaboração entre oito das maiores organizações de investigação científica intergovernamentais, que combinam os seus recursos, instalações e experiência para apoiar a ciência Europeia de modo a que alcance todo o seu potencial. Como parte das suas atividades educacionais e de divulgação, o EIROforum publica a Science in School.

Resources

Institutions

Author(s)

Julian Eastoe é professor de química, especialista em química de surfatantes na Universidade de Bristol, Reino Unido. Paul Brown é estudante de doutoramento, investigando novos surfatantes na Universidade de Bristol, Reino Unido. Isabelle Grillo é cientista instrumental no Instituto Laue-Langevin em Grenoble, França.

Julian Eastoe e Paul Brown tiveram a ideia dos surfatantes magnéticos e realizaram experiências laboratoriais (com a ajuda da Professora Annette Schmidt da Universidade de Colónia, Alemanha). Isabelle Grillo esteve ativamente envolvida na análise de dados e na dispersão de neutrões.

Tim Harrison também trabalha na Universidade de Bristol, como “School Teacher fellow” na Escola de Química. Esta é uma posição destinada a um professor do ensino secundário que foi criada para estabelecer uma ponte entre as escolas secundárias e as universidades, e para utilizar os recursos da Escola de Química como forma de promover a química a nível regional, nacional e internacional. Tim é um autor frequente da Science in School.

License

CC-BY-NC-ND