Descobertas surpreendentes Understand article

Tradução de Isabel Queiroz Macedo. O radiocarbono ajuda os cientistas a compreender como os neurónios permanecem estáveis, mas ao mesmo tempo flexíveis.

Em 30 de outubro de 1961, uma nuvem cogumelo sete vezes mais alta do que o Monte Everest elevou-se no céu de Nova Zembla, um arquipélago no Mar de Barents. Foi a marca deixada pela Tsar Bomba, de 50 Mton, a maior bomba atómica detonada, pela União Soviética. A onda de choque partiu janelas a 900 km de distância, mas o impacto político foi ainda maior e contribuiu para a interdição de ensaios nucleares acima do solo. Agora, mais de meio século depois, os cientistas do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL, sigla em inglês), em Heidelberg, Alemanha, estão a tirar partido desta era negra da Guerra Fria: o radiocarbono, um componente inofensivo libertado nesses ensaios nucleares, está a fornecer informação preciosa sobre o funcionamento do cérebro humano.

A investigadora Kyung-Min Noh, do EMBL, e os seus colegas nos EUA estão a examinar a distribuição de radiocarbono para perceberem como os neurónios, as nossas células mais longas, permanecem estáveis, ​​mas suficientemente flexíveis para nos permitirem aprender, recordar e pensar ao longo da vida. Os investigadores também esperam que o seu trabalho permita compreender melhor certos defeitos de desenvolvimento do cérebro, como o autismo, e outros distúrbios, como a doença de Alzheimer.

A coordenadora do grupo, Kyung-Min Noh, no EMBL em Heidelberg, e os seus colegas, nos Estados Unidos, estudam o comportamento do radiocarbono para perceber como os neurónios, as nossas células mais longas, permanecem estáveis e ao mesmo tempo flexíveis.
Imagem cortesia do EMBL Photolab/Marietta Schupp

Registos de radiocarbono

O carbono é o elemento fundamental de todas as moléculas orgânicas do nosso organismo. Quase todo o carbono está na forma “normal”, carbono-12, 12C. O radiocarbono (isótopo carbono-14, 14C) é ligeiramente mais pesado e ligeiramente radioactivo e existe na natureza em quantidades relativamente pequenas. Entre 1945 e 1963, os testes nucleares acima do solo lançaram na atmosfera quantidades de 14C muito superiores aos níveis normais. O radiocarbono disseminou-se através da cadeia alimentar, o que significa que as pessoas que viveram nessa época incorporaram no organismo mais carbono-14 do que o normal. Com a diminuição dos níveis de 14C no ambiente para os valores normais, o organismo substituiu gradualmente o 14C por 12C, à medida que as células se foram renovando.

Mas diferentes partes do corpo renovam-se a velocidades diferentes, e assim os cientistas podem saber que células são renovadas e com que frequência, medindo a quantidade de 14C nos tecidos de pessoas que viveram na era dos ensaios nucleares. Há dez anos, cientistas da Suécia e dos EUA usaram esta técnica para mostrar que os neurónios de certas regiões do cérebro são constantemente renovados ao longo da vida, enquanto outros páram a renovação no nascimento e têm a idade do indivíduo ao qual pertencem. A equipa de Kyung-Min adaptou esta abordagem para desvendar um dos grandes mistérios da neurobiologia: como é que esses neurónios duradouros permanecem estáveis, e no entanto adaptáveis?

Desvendando segredos celulares

Parte da resposta está no ADN dos neurónios. Este ADN contém genes que instruem o neurónio a fazer pequenas máquinas moleculares, chamadas proteínas, que lhe permitem desempenhar as suas funções. Ainda que quase todas as nossas células contenham o mesmo conjunto de genes, cada tipo de célula usa um subconjunto diferente para exercer a sua função específica. Isso significa que a célula precisa de manter certos genes activos e outros inactivos.

Para conseguir isso, a célula tem modos diferentes de empacotar o ADN. O ADN não flutua como um emaranhado caótico; ele é enrolado em torno de proteínas chamadas histonas, um pouco como o fio enrolado em torno de um sem-número de minúsculas bobinas. O ADN inactivo é fortemente enrolado, enquanto o ADN de genes activos fica mais solto, e portanto mais acessível à maquinaria celular de leitura de genes. Um vasto exército de outras proteínas altera as histonas para ajudar a regular a actividade dos genes. Kyung-Min interessou-se pela biologia de histonas durante o seu doutoramento no Albert Einstein College of Medicine, em Nova Iorque, EUA. Ao estudar os efeitos do acidente vascular cerebral (AVC) nos cérebros de ratinhos, ela encontrou uma proteína que alterou as histonas em neurónios danificados por AVC. Começou então a investigar o que acontecia às histonas de células que tinham deixado permanentemente de se dividir, e os neurónios eram uma escolha lógica para esse estudo. Os cientistas já sabiam que as células em divisão activa usam histonas canónicas, enquanto as células em pausa antes da próxima ronda de divisão usam histonas de um tipo diferente, histonas variantes. Mas sabiam muito pouco sobre o que se passa com histonas de células que deixaram permanentemente de se dividir.

As histonas variantes parecem estar associadas a regiões activas de ADN, e assim podem ter um papel específico na regulação da expressão genética. Este tipo de controlo será especialmente importante em neurónios de longa duração, que além de sobreviverem a uma vida de desgaste, têm de alterar a sua actividade genética de um modo muito dinâmico, para responder a um ambiente em constante mudança. Durante o seu pós-doutoramento na Universidade de Rockefeller, EUA, Kyung-Min e a sua equipa descobriram que os neurónios que tinham cessado a divisão incorporaram histonas variantes no seu ADN. Mas para entender a razão eles tinham de descobrir quando: as histonas variantes entraram gradualmente, ou todas de uma vez?

Histonas e carbono-14

Para esclarecer este assunto em seres humanos, a equipa voltou-se para o isótopo 14C. Uma técnica denominada espectrometria de massa permitiu-lhes distinguir histonas variantes contendo carbono normal (12C) das que contêm radiocarbono (14C). Ao estudar amostras post-mortem de pessoas que viveram na era dos ensaios nucleares, verificaram que a incorporação de histonas variantes parece ocorrer antes da puberdade. “Não é um processo gradual”, diz Kyung-Min. “Ocorre uma substituição muito intensa na fase inicial do desenvolvimento humano, e o cérebro mantém o statu quo ao longo da vida”.

Isto sugere que a renovação de histonas é um processo vital no desenvolvimento do cérebro da criança, que coincide com a fase de aprendizagem mais dinâmica, explica ela. Além disso, estudos recentes revelaram um grande número de doenças genéticas associadas a condições de desenvolvimento anormal do cérebro, como o autismo ou dificuldades de aprendizagem. Muitos destes genes estão envolvidos na biologia de histonas. “Estas observações levantam algumas questões importantes. Por exemplo, qual é o real significado desta renovação de histonas durante o desenvolvimento? “

Desde que começou a trabalhar no EMBL, em novembro de 2014, Kyung-Min procura essas respostas cultivando neurónios em laboratório, com os quais realiza experiências genéticas para perceber o funcionamento e o papel das histonas. Isso é mais difícil do que parece: um dos principais desafios no campo da neurobiologia é obter quantidade suficiente de células do tipo certo para realizar as experiências. Assim, a equipa de Kyung-Min está a usar células imaturas de embriões de ratinhos, que converte em neurónios adultos, em placas de Petri. Além disso, a equipa está a preparar-se para trabalhar com um tipo de células conhecidas como células iPS (células-tronco pluripotentes induzidas) humanas, que também pretende converter em neurónios. Estas células não são provenientes de embriões humanos, mas de células humanas adultas que foram revertidas a um estado mais jovem.

Efeitos de edição

Para alterar as propriedades das histonas em neurónios cultivados em laboratório, a equipa de Kyung-Min vai usar uma nova técnica chamada CRISPRw1. Esta técnica permite “editar” o conteúdo dos genes na célula introduzindo alterações nas histonas dos neurónios derivados de células iPS. Essas alterações, ou mutações, serão baseadas em mutações que desempenham um papel importante no desenvolvimento do cérebro humano. Os estudos com células iPS permitirão estudar os efeitos destas mutações no comportamento dos neurónios.

“Embora o nosso trabalho esteja ainda na fase inicial, os novos conhecimentos sobre histonas neuronais podem ser muito úteis em outras áreas, por exemplo na investigação sobre doenças neurodegenerativas, como a doença de Alzheimer”, diz Kyung-Min.

Fármacos dirigidos à maquinaria celular que modifica histonas estão a ser utilizados no tratamento de certos tipos de cancro, como o linfoma de células T, e os estudos destes fármacos estão a ajudar a perceber como a alteração de histonas pode afectar a célula. Uma ideia que está a tomar forma é que a doença pode resultar do facto de o ADN não ser adequadamente enrolado em torno das suas histonas. “Se começarmos a desenrolar todo esse fio desorganizado, a célula tenta encontrar uma maneira de o reorganizar de forma ordenada”, diz Kyung-Min. “Restaurar uma célula de volta a um estado saudável ordenado poderá constituir uma nova abordagem terapêutica.”
 

Imagem cortesia de Aad Goudapfel

Agradecimentos

A versão original deste artigo apareceu no número da Primavera de 2015 do EMBLetc, a revista do European Molecular Biology Laboratory.


Web References

  • w1 – Se quer saber mais sobre a técnica de edição de genes CRISPR, consulte o website do  EMBL.  

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Author(s)

Claire Ainsworth é jornalista independente e vive em Hampshire, Reino Unido. Escreve sobre genética e biomedicina e um dia conheceu um dragão. Um dragão real. Encontre-a no Twitter: @ClaireAinsworth

Review

Este artigo fascinante relaciona eventos históricos com investigação em biologia celular moderna e explora a carreira profissional de uma jovem cientista. A utilização de radioisótopos como o 14C em biofísica e biologia molecular pode servir de base de discussão em aulas de física ou biologia de nível avançado ou em aulas de química de nível intermédio.

Exemplos de perguntas para dinamizar a discussão:

  1. O que são radioisótopos e para que podem ser usados em investigação científica?
  2. Qual é a estrutura e a função das histonas na célula?
  3. Qual é a relação entre ADN e histonas?

Terry Myers, Banbridge Academy, Irlanda

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