A gripe das aves na visão do ecologista Understand article

Traduzido por Artur Manuel Semedo Rodrigues de Melo. Serão as aves migratórias responsáveis pela propagação da gripe das aves? Devemos matar todas essas aves? Lucienne Niekoop e Froukje Rienks do Netherlands Institute of Ecology argumentam a necessidade de uma aproximação mais…

Milhões de aves migram
anualmente, mas estarão elas
a disseminar a gripe das
aves? Milhões de camiões
circulam pelas estradas de
todo o mundo transportando
aves de criação…

Imagem cortesia de Jan Visser,
NIOO-KNAW

“Matem todas as aves migratórias.” Com esta afirmação controversa, o político russo Vladimir Zjirinovski provocou consternação geral em Janeiro de 2006, altura em que a gripe das aves se estava a propagar rapidamente. A questão principal é, no entanto, quais as aves que devem ser culpabilizadas. Ao considerar esta questão, a investigação ecológica pode desempenhar um papel chave na compreensão da gripe das aves.

Uma visão geral

Em meados de 2003, a eclosão da gripe das aves provocada pelo H5N1 teve início no sudeste asiático. Ainda hoje não se compreende totalmente como este vírus se propaga, mas para evitar uma pandemia é importante adoptar uma aproximação multidisciplinar. Os ecologistas do Netherlands Institute of Ecologyw1 estão a cooperar de forma estreita com os virologistas do Erasmus Medical Centre em Roterdãow2, Holanda, no sentido de perceber o papel desempenhado pelas aves migratórias na transmissão da gripe das aves.

Subtipos letais

Em primeiro lugar, recordemos alguns aspectos básicos da gripe das aves. Os vírus, pequenas unidades de RNA ou DNA revestidas por um invólucro proteico, podem ocorrer numa grande diversidade de formas. A gripe é provocada pelo vírus influenza, que se apresenta em três tipos: A, B e C, podendo todos infectar a espécie humana. A gripe das aves (influenza aviária) é provocada pelo vírus influenza A, que tem as aves como reservatório.

Existem vários subtipos de influenza A. O vírus perigoso que se está actualmente a propagar, possui o nome de código H5N1, que deriva das proteínas existentes no revestimento do vírus. H5 deve-se à proteína hemaglutinina tipo 5 (existem 16 tipos no total). Neuraminidase é o nome completo da proteína N, que se apresenta em nove variantes. Diferentes combinações das proteínas superficiais do tipo H e N resultam num grande número de subtipos do vírus. Os subtipos podem ser inofensivos, sendo, neste caso, conhecidos como vírus LPAI (low pathogenic avian influenza). Os subtipos perigosos ou letais são classificados como vírus HPAI (highly pathogenic avian influenza).

Tabela 1: Apenas os subtipos do vírus influenza A, representados a azul, são encontrados em aves selvagens. A lista de subtipos encontrados em aves domésticas não está completa, mas provavelmente será semelhante à das aves selvagens.
Fonte: Dr Vincent Munster, Erasmus Medical Centre, Roterdão, Holanda

  H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 H10 H11 H12 H13 H14 H15 H16
N1                              
N2                                
N3                                
N4                                
N5                                
N6                                
N7                                
N8                                
N9                                
Tabela 2: Casos humanos de influenza A (a azul) envolvem muito menos subtipos de vírus que os encontrados em aves. H1N1 = “gripe espanhola” de 1918 (>40 milhões de mortes); H2N2 = “gripe asiática” de 1957 (1-4 milhões de mortes); H3N2 = “gripe de Hong-Kong” de 1968 (1-4 milhões de mortes)
Fonte: Dr Vincent Munster, Erasmus Medical Centre, Roterdão, Holanda
  H1 H2 H3 H4 H5 H6 H7 H8 H9 H10 H11 H12 H13 H14 H15 H16
N1                                
N2                                
N3                                
N4                                
N5                                
N6                                
N7                                
N8                                

N9

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Eclosão à escala global

Desde 2003 o H5N1 tem sido
encontrado em aves
domésticas e em aves
selvagens, em muitas
regiões (situação em 12 de
Setembro de 2006)

Imagem cortesia da
Organização Mundial de Saúde

Normalmente os vírus influenza não ultrapassam a barreira da espécie, o que quer dizer que diferentes espécies de organismos não conseguem contaminar-se umas às outras. No entanto, foi confirmado que o vírus influenza aviário H5N1, bastante perigoso, se transmite das aves para a espécie humana, apesar de não ser fácil. Na eclosão recente, foram detectados pelo menos 256 casos em humanos, dos quais mais de metade morreram (registos até 16 de Outubro de 2006), de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)w3. Apesar disso, a OMS afirma que este é um número reduzido quando comparado com a enorme quantidade de aves infectadas

Foi confirmado que o vírus H5N1 se propaga entre seres humanos apenas esporadicamente, como consequência do contacto frequente. No entanto, como o vírus sofre mutações rapidamente, investigadores de todo o mundo avançam a previsão de que o vírus H5N1 irá eventualmente combinar-se com um vírus influenza específico da espécie humana. O micróbio altamente patogénico resultante da fusão poderá, assim, transmitir-se livremente de pessoa para pessoa e originar uma contaminação global ou pandemia.

Fezes

É provável que todas as espécies de aves possam ficar infectadas com a influenza aviária. As aves atingidas segregam o vírus em concentrações elevadas nas fezes, sendo a principal via de contaminação conhecida a ingestão destas fezes contagiosas. Aves aquáticas como patos, gansos e cisnes parecem estar entre as espécies de aves mais infectadas, constituindo um reservatório natural de todos os vírus influenza, habitualmente das formas menos patogénicas. Jan van Gils, um ecologista do Netherlands Institute of Ecology, explica: “É evidente que as aves de alimentação aquática parecem mais sensíveis. Provavelmente porque elas recolhem alimentos em águas contaminadas.” O colega Marcel Klaassen continua: “Há quatro potenciais razões para a maior sensibilidade das aves aquáticas. Em primeiro lugar, sendo aves migratórias, muitas delas percorrem grandes distâncias, e por isso a probabilidade de visitarem focos de infecção é maior. Em segundo lugar, elas preferem viver em zonas húmidas. Fora do hospedeiro, o vírus consegue sobreviver durante longos períodos de tempo, especialmente em águas límpidas a baixas temperaturas: após um mês em gelo, o vírus ainda é virulento. Além disso, as aves aquáticas vivem em grupo e são muito sociáveis, o que pode aumentar a probabilidade de transmitirem o vírus entre si.” Klaassen termina referindo o papel da sua fonte de alimento: “Elas produzem grande quantidade de fezes por causa da dieta vegetariana que têm. Como a dieta vegetariana tem um baixo valor nutritivo, os herbívoros comem uma grande quantidade de alimentos por dia e produzem bastantes excrementos. Por exemplo, os gansos defecam de cinco em cinco minutos.”

Fora da estação de
acasalamento, as aves
migratórias formam grupos
mistos com outras espécies
de aves migratórias,
tornando-as vulneráveis aos
vírus

Imagem cortesia de Jan Visser,
NIOO-KNAW

As aves migratórias estão a ser consideradas suspeitas à medida que o H5N1 se propaga rapidamente. As suas disponibilidades de alimento flutuam sazonalmente; por esta e outras razões, as aves migratórias percorrem enormes distâncias – até 30000 km anualmente – e podem dispersar microrganismos patogénicos, tais como os vírus. Muitas aves migratórias intersectam os seus percursos, formando uma rede de rotas migratórias e levando ao contacto entre muitas espécies e populações. Dependendo da amplitude do contacto entre as aves e da forma como se contaminam umas às outras, os vírus podem espalhar-se por todo o mundo. Desta forma, a rota de contaminação é determinada em grande parte pela ecologia específica do agente patogénico e do seu hospedeiro.

Aves doentes

A investigação ecológica é necessária para a compreensão da distribuição do vírus da gripe das aves numa população de aves, da demarcação da infecção, da transmissão e dos efeitos que os vírus influenza têm no seu hospedeiro migratório. Com este fim, os ecologistas do Netherlands Institute of Ecology estudam aves migratórias aquáticas, tais como o cisne de Bewick. Os cientistas recolhem fezes e amostras cloacais com cotonetes, observam o comportamento das aves e estudam a ingestão de alimentos e a dieta deste pequeno cisne. As fezes e os cotonetes são depois enviados aos virologistas do Erasmus Medical Centre, que os analisam relativamente à presença de agentes patogénicos, como o vírus influenza. Deste modo, os investigadores pretendem fazer um inventário do subtipo de influenza que cada hospedeiro transporta.

O pato arrabio migratório,
Anas acuta, está espalhado
pelo norte da Europa, Ásia e
América do Norte. No
Inverno, voa para sul
chegando ao equador. Fora
da época de acasalamento,
estes patos sociais formam
grupos mistos com outras
espécies de patos

Imagem cortesia de Jan Visser,
NIOO-KNAW

Por agora, apenas foram detectados vírus LPAI. Até há pouco tempo atrás, os cientistas não sabiam que as aves podiam ficar doentes com uma infecção de LPAI: supunha-se que apenas os vírus HPAI provocavam sintomas como morte repentina, edemas na cabeça e pescoço, diarreia, hemorragias subcutâneas, perda de apetite, letargia e problemas respiratórios. No entanto, este ano, os ecologistas descobriram dois cisnes infectados com vírus LPAI (infectados com H6N2 e com H6N8) que tinham iniciado a sua migração de Primavera com mais de um mês de atraso. Jan van Gils explica: “Quando encontrámos as aves infectadas, elas estavam muito mal. Comiam menos e tinham dificuldades de digestão, originando menor quantidade de gorduras acumuladas. Estamos curiosos sobre as condições em que estes cisnes infectados irão regressar no Inverno, e se conseguirão reproduzir-se.” É de esperar que o conhecimento adquirido sobre os LPAI contribua para a investigação dos HPAI.

Anilhas “high-tech”

Para prever como irá continuar a propagação do vírus da gripe, é crucial estudar as rotas migratórias. No Netherlands Institute of Ecology, são recolhidos dados pelo Dutch Ringing Centrew4 para estudar as rotas das aves migratórias, em cooperação com outros países europeus. Numerosas espécies de aves são capturadas e anilhadas por voluntários. A anilha de metal leve é um passaporte da ave: se alguém encontrar uma ave anilhada, informa o Ringing Centre. Desta forma, cada ave pode ser localizada e determinadas as rotas de voo de diferentes espécies. A rota do cisne de Bewick é estudada, também, colocando em alguns destes cisnes uma anilha com GPS (global positioning system), que permite localizar as aves com maior exactidão. Outras espécies de aves aquáticas são acompanhadas de forma semelhante por outros ecologistas (ver imagem), e a informação destas rotas de voo é comparada com a localização do focos de infecção do H5N1

 

O centro do problema

Aves equipadas com anilhas
GPS podem ser localizadas
continuamente. Os pontos
roxos representam o
percurso do ganso de fronte-
branca Harry; os pontos
amarelos o percurso de Adri.
Exemplos de imagens de
satélite
de localização em
tempo real estão disponíveis
online

Até ao momento, as aves migratórias aquáticas têm recebido grande atenção na qualidade de ameaças à saúde. São consideradas por muitos como os principais, se não os únicos, vectores de vírus que infectam as pessoas e as aves domésticas, mas não existem provas científicas consistentes. O ecologista Marcel Klaassen diz, “Há uma grande histeria sobre o papel que as aves migratórias desempenham. Talvez porque isso desvia a atenção do centro real do problema: a manutenção de uma grande densidade de aves domésticas, constituindo um paraíso para os vírus. E devido ao comércio, as aves domésticas são transportadas com grande frequência e em grandes quantidades. Assim, o vírus da gripe pode propagar-se facilmente.”

Além disso, os virologistas do Erasmus Medical Centre descobriram que as infecções por LPAI naturalmente presentes em aves migratórias selvagens são estáveis, ao contrário dos vírus LPAI presentes nas aves domésticas, que sofrem mutações rapidamente. Em resumo, as aves migratórias estão envolvidas na propagação da gripe das aves como vítimas, mas não necessariamente como ofensoras.

A investigação sobre o papel desempenhado pelas aves migratórias e pelas aves domésticas na propagação do vírus influenza tem de continuar, antes que pessoas como Zhirinovski advoguem ofensas às aves migratórias. Em especial, a ligação específica entre o hospedeiro e o vírus influenza infectante deve ser investigado.

 

Eco-boletins

O Netherlands Institute of Ecology oferece informação ecológica actualizada em eco-boletins. O primeiro aborda a ecologia da gripe das aves e está preparado para estudantes do ensino secundário, para utilização em trabalhos escolares tais como relatórios, experiências, apresentações e organização de debates. Os professores de biologia podem encontrar informação ecológica suplementar, organizada por tópicos, em websites complementares.

Os eco-boletins contêm:

  • Conceitos sobre temas ecológicos correntes
  • Gráficos e imagens de apoio
  • Questionários e outras provas online
  • Informação acerca de, ou entrevistas com, investigadores
  • Tópicos de investigações futuras
  • Links para, por exemplo, pequenos vídeos.

O eco-boletim A Ecologia da Gripe das Aves está disponível em inglês e alemão.


Web References

Review

Nos últimos três anos, a gripe das aves prendeu a atenção das pessoas, mais do que qualquer outra doença. Actualizações frequentes sobre a sua propagação e sobre as vítimas, têm sido incluídas sistematicamente nos noticiários, alarmando cientistas, governantes e o público em geral. Como era de esperar, a curiosidade dos estudantes no que se refere à gripe das aves também aumentou.

Este artigo fornece ao leitor uma rápida mas útil descrição das especificidades da gripe das aves com ênfase no papel desempenhado pelas aves migratórias na propagação da doença.

A informação no artigo podia servir directamente como meio de satisfazer a curiosidade dos estudantes. Além disso, podia inspirar professores e estudantes na organização de pequenas investigações, para recolher informação adicional relativamente ao papel das aves migratórias como vectores do mortífero vírus da gripe das aves. Trabalhos de grupo podiam ser orientados na recolha de dados para determinar se as aves migratórias são boas candidatas na disseminação da gripe das aves, tal como hoje são responsabilizadas, levando eventualmente uma pandemia. Outras investigações podiam concentrar-se nas medidas que se deveriam tomar para evitar que a doença se propague para outras regiões do mundo

A natureza e o conteúdo destas investigações tornam-nas ideais para estudos interdisciplinares. Por exemplo, a biologia e a geografia podiam juntar-se para esclarecer melhor os factos e mitos que rodeiam a correlação entre as aves migratórias e os focos de gripe das aves.

Michalis Hadjimarcou, Chipre

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