Para lá da visão: desvendando o cosmos às mais altas energias Understand article

Traduzido por Pedro Augusto. Claudia Mignone e Rebecca Barnes exploram os raios X e os raios gama e investigam as técnicas engenhosas usadas pela Agência Espacial Europeia para observar o cosmos a estes comprimentos de onda.

Visto a olho nu, com binóculos ou um telescópio, o céu noturno estrelado é um espetáculo estasiante e tranquilo. Mas se pudéssemos ver o céu nos altamente energéticos raios X e raios gama, em vez da luz visível apercebida pelos nossos olhos, poderíamos ver uma imagem bem diferente – um dramático espetáculo cósmico de luzw1 (Figura 1).
 

Figura 1: Em cima: uma visão de todo o céu a comprimentos de raios X de alta energia do observatório espacial INTEGRAL da ESA, baseada em dados recolhidos na gama de energia 18-40 keV  (a luz visível corresponde a 1.65–3.1 eV). Em baixo: uma visão de todo o céu em comprimentos de onda do visível. Clique nas imagens para as aumentar.
As imagens são cortesia da ESA / F Lebrun / CEA Saclay, Service d’Astrophysique (em cima); ESO / S Brunier (em baixo)
 
Figura 2: O resto de
supernova de Tycho como
visto pelo XMM-Newton da
ESA. Este resto é
relativamente jovem e está
associado a uma explosão de
supernova que foi observada
em 1572 pelo astrónomo
dinamarquês Tycho Brahe.
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A imagem é cortesia de Marco
Iacobelli (XMM-Newton SOC) e
ESA

Alguns dos mais poderosos e violentos fenómenos no Universo brilham poderosamente nestes comprimentos de onda curtos, tais como explosões em supernova – o final ardente da vida de uma estrela massiva – e buracos negros, enquanto rapidamente devoram matéria. Como sinal da sua natureza dinâmica, muitas fontes de raios X e raios gama exibem alterações distintas no seu brilho, mesmo ao longo de períodos de tempo muito curtos. As explosões em raios gama, por exemplo, aparecem como flashes repentinos e brilhantes que duram apenas poucos segundos. Estas explosões surgem, possivelmente, das mais extremas explosões no cosmos (para saber mais, ver Boffin, 2007). Além disso, raios X e raios gama são libertados através de processos físicos diferentes daqueles responsáveis pela emissão de luz visível. Isto significa que galáxias e outros objetos astronómicos parecem diferentes quando vistos na extremo das altas energias do espectro eletromagnético (EM)w2 (Figuras 2 e 3).
 

Figura 3: A Galáxia Charuto (M82) como vista pelo XMM-Newton, nos comprimentos de onda do visível e ultravioleta (UV) – inserção esquerda – e nos raios X (inserção direita). A imagem principal é uma composição das imagens nos comprimentos de onda do visível, UV e raios X. A emissão de raios X mostra-se em azul e revela plumas de gás muito quente avançando para fora do disco da galáxia. Clique na imagem para aumentar.
A imagem é cortesia da ESA
 

Esta visão revolucionária do cosmos foi revelada aos astrónomos no início dos anos 1960, nos primórdios da era espacial, quando foguetes e satélites permitiram que instrumentos especialmente desenvolvidos fossem levados para além da barreira obscurecedora da atmosfera da Terraw3. A Agência Espacial Europeia (ESA; vera caixa)w4 em breve se juntou com a missão de raios gama COS-B (1975) e o observatório de raios X EXOSAT (1983). Hoje, a ESA opera dois observatórios do género: o Multi-Mirror satellite (XMM-Newton), lançado em 1999, e o International Gamma-Ray Astrophysics Laboratory (INTEGRAL), lançado em 2002.

Como é que eles funcionam? Como explicado num anterior artigo (Mignone & Barnes, 2011), não há distinção física entre raios X, raios gama, luz visível e outros tipos de radiação EM. Todos são formas da luz, diferindo apenas no respetivo comprimento de onda (ou, como os três estão relacionados, diferindo em frequência ou energia; Figura 4). Contudo, dependendo do respetivo comprimento de onda (ou frequência, ou energia), a interação com a matéria é muito diferente. Isto tem implicações fundamentais para a Astronomia.

Figura 4: Um esquema do espetro EM destacando os raios X e os raios gama, indicando comprimento de onda, frequência e energia ao longo do espetro. Clique na imagem para aumentar
A imagem é cortesia da ESA / AOES Medialab
 

Sistemas óticos tradicionais, tais como os nossos olhos, câmaras, microscópios ou telescópios, dependem de lentes (ou espelhos) que refratam (ou refletem) raios de luz e os focam num único ponto para a produção de imagens. Contudo, isto é difícil com alguns raios de luz. Uma vez que os raios X e os raios gama têm comprimentos de onda de tamanho semelhante aos átomos e às partículas subatómicas, respetivamente, não podem ser facilmente refletidos ou focados como a luz visível mas tendem, em vez disso, a ser absorvidos quando batem em materiais densos (Figura 5).
 

Figura 5: Raios de luz batendo numa superfície serão absorvidos se a sua energia for superior a um determinado valor limite que depende do material da superfície. A energia da luz absorvida é transferida para os eletrões no material que, depois, são emitidos. Este fenómeno, conhecido como o efeito fotoelétricow5, é um de vários fenómenos que acontecem quando radiação altamente energética interage com a matéria. Para uma forma dramática de ensinar este assunto na escola, ver Bernardelli (2010).
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A imagem é cortesia da ESA / AOES Medialab
 

O facto dos raios X e raios gama serem absorvidos por materiais densos torna-os adequados para muitas aplicações, incluindo imagem médica e investigações em materiaisw6. Para os astrónomos, contudo, isso é um problema: sendo facilmente absorvidos, estes tipos de radiação são muito difíceis ou impossíveis de focar; assim, obter imagens detalhadas das respetivas fontes é um desafio.

Apesar de tudo, os cientistas desenvolveram técnicas para a deteção de raios X e raios gama vindos do cosmos. Diferem significativamente das técnicas usadas na ótica tradicional e isso, junto com o facto de operarem no espaço, significa que os telescópios para a Astronomia de altas energias não se parecem nada com telescópios óticos.

Pedras aos saltos
A imagem é cortesia de Killy
Ridols;/ fonte da imagem:
Wikimedia Commons

Técnicas de observação em raios X

Embora seja difícil refletir raios X, tal não é impossível se atingirem o espelho do telescópio a um ângulo muito pequeno – pense numa pedrinha atirada junto à superfície da água, deslocando-se ao longo da mesma. Contudo, enquanto um ângulo de incidência tão grande quanto 20º permite às pedrinhas saltar na água, os raios X só podem ser refletidos a ângulos muito mais pequenos: 1º ou menos. Os raios X devem tocar muito de leve no espelho, sob risco de serem absorvidos.

Para conseguir este pequeno ângulo – e focar os raios X num único ponto – os espelhos utilizados nos telescópios de raios X parecem-se com um funil (Figura 6). De facto, a forma do espelho é uma combinação de um parabolóide com um hiperbolóide, garantindo que os raios X que neles tocam são refletidos duas vezes. Desta forma, a luz é focada num detetor para formar uma imagem da fonte de raios X.

Figura 6:
a) O percurso da luz dos raios X através do XMM-Newton. A nave transporta três telescópios, cada um consistindo de 58 espelhos concêntricos, cobertos de ouro e em forma de tubo.
b) Mostra-se a combinação de espelhos parabólicos e hiperbólicos utilizados, em secção, através de um dos telescópios.
c) Os raios X que tocam nas superfícies dos espelhos são refletidos duas vezes e focados num detetor. Os raios X têm de tocar no espelho com um ângulo de 1º ou menos, caso contrário são, provavelmente, absorvidos.
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A imagem é cortesia da ESA / AOES Medialab
 
Figura 7: Os espelhos
concêntricos que constituem
um dos três telescópios a
bordo do XMM-Newton.

A imagem é cortesia da ESA

Esta técnica engenhosa, chamada de ótica de toque incidente, tem um grande inconveniente: de forma a serem refletidos e focados os raios X têm de se deslocar quase paralelamente aos espelhos em forma de tubos, pelo que os telescópios recolhem apenas uma quantidade limitada de radiação de raios X. Um telescópio poderoso é um que coleciona grandes quantidades de luz de fontes cósmicas distantes; isto é, normalmente, conseguido com espelhos muito grandes. Em contraste, para maximizar o seu poder, os telescópios de raios X têm vários espelhos concêntricos, uns dentro dos outros, criando uma estrutura semelhante a um alho francês gigante. Cada um dos três telescópios a bordo do observatório espacial XMM-Newton da ESA, por exemplo, consiste em 58 espelhos concêntricos (Figura 7)w6.

Para além da sua forma bizarra, os espelhos do XMM-Newton diferem de espelhos de telescópios convencionais na medida em que são feitos de níquel coberto a ouro em vez de vidro coberto de alumínio: os elementos químicos mais pesados têm maior probabilidade de refletir os raios X que chegam (para saber mais, ver Singh, 2005).

Técnicas de observação em raios gama

Figure 8a) Representação
artística do INTEGRAL
destacando o SPI, um dos
instrumentos de máscara-
código a bordo da nave.
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aumentar. Clique na imagem
para aumentar.

A imagem é cortesia da ESA /
AOES Medialab

Se focar raios X é desafiante, focar raios gama – a forma mais energética de luz – é quase impossível. De forma a produzir imagens de fontes cósmicas nesta porção do espetro EM, por isso, os astrónomos tiveram de encontrar métodos alternativos.

Muitos instrumentos para Astronomia dos raios gama, incluindo aqueles a bordo do observatório espacial INTEGRAL da ESA, dependem de uma técnica chamada de “imagem com máscara-código”. Esta funciona de forma semelhante a uma câmara escura, que não tem lente mas apenas um pequeno buraco através do qual os raios de luz pasam, projetando uma imagem invertida no lado oposto da parede da câmara.

Figura 8b) Como funciona a
câmara máscara-código:
raios gama de duas
fontesastronómicas
diferentes passam através
dos buracos da máscara.
Alguns dos raios gama
incidentes conseguem passar
através da máscara e
iluminam pixeis no detetor
em baixo (mostrado a azul e
vermelho, dependendo da
fonte), enquanto outros são
bloqueados pelos pontos
opacos na máscara, causando
sombras no detetor
(mostrado a branco). Clique
na imagem para aumentar.

A imagem é cortesia da ESA /
AOES Medialab

Em vez do único buraco da câmara escura, uma “câmara de máscara-código” tem uma máscara com um padrão especial de buracos e locais opacos em frente ao detetor. Raios gama que passem através dos buracos iluminam alguns pixeis do detetor, enquanto outros são bloqueados pelos pontos opacos da máscara causando sombras no detetor.

O padrão de pixeis brilhantes e escuros contém informação sobre a localização das fontes de raios gama no céu e a intensidade dos pixeis iluminados dá informação sobre o seu brilhow7. Apesar de não serem detalhadas, as imagens resultantes são úteis para sondar alguns dos mais poderosos fenómenos no Universo (Figuras 8a e 8b, 9 e 10).

 

Figura 9: Imagens do INTEGRAL da fonte intermitente IGR J16328-4726 (com círculo à volta). Esta fonte astronómica tem sido seguida ao longo de vários anos com o INTEGRAL na gama de energia 20-50 keV. Como se pode ver, o brilho da fonte varia significativamente ao longo do tempo. Os astrónomos acreditam que a fonte é um transiente super-rápido de raios X: um sistema binário que consiste numa estrela supergigante muito luminosa e um objeto compacto, tal como uma estrela de neutrões ou um buraco negro, orbitando um em torno do outro. Acredita-se que o fluxo irregular de matéria da estrela supergigante para o objeto compacto causa a natureza intermitente destas fontes.
A imagem é cortesia da ESA / INTEGRAL / M Fiocchi
 
Figura 10: Representação
artística de um transiente
super-rápido de raios X.
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A imagem é cortesia da ESA

Em breve…

Enquanto lê este artigo, os observatórios XMM-Newton e INTEGRAL da ESA circundam a Terra, mantendo sob observação o sempre mutável Universo de altas energias e ajudando a desvendar maravilhas celestes. No nosso próximo artigo vamos explorar alguns destes fenómenos, tais como a vida e morte turbulenta das estrelas na Via Láctea e buracos negros gigantescos nos centros de galáxias distantes.

 

Mais sobre a ESA

A Agência Espacial Europeia (ESA)w4 é a porta da Europa para o espaço, organizando programas para descobrir mais sobre a Terra, o seu ambiente próximo, o nosso Sistema Solar e o Universo, bem como colaborar na exploração humana do espaço, desenvolvendo tecnologias e serviços de base satélite e promovendo a indústria europeia.

A Direção de Ciência e Exploração Robótica dedica-se ao programa espacial da ESA e à exploração robótica do Sistema Solar. Na busca da compreensão do Universo, das estrelas, dos planetas e das origens da vida, os satélites espaciais científicos da ESA penetram nas profundezas do cosmos e vislumbram as galáxias mais distantes, estudam o Sol com um detalhe sem precedentes e exploram os nossos vizinhos planetários.

A ESA é membro do EIROforumw8, o editor do Science in School.


References

Web References

Resources

  • Os videocasts Science@ESA exploram o nosso Universo através dos olhos da frota de naves da ESA. O quinto episódio (‘The untamed, violent Universe’) oferece uma primeira abordagem ao Universo quente, energético e frequentemente violento e às missões da ESA que o detetam usando Astronomia dos raios X e raios gama. Ver: http://sci.esa.int/vodcast

Institutions

Author(s)

Claudia Mignone, Vitrociset Belgium para a ESA – European Space Agency, é uma escritora de ciência da ESA. Tem uma licenciatura em Astronomia pela Universidade de Bolonha, Itália e um doutoramento em Cosmologia pela  Universidade de Heidelberg, Alemanha. Antes de trabalhar para a ESA, trabalhou no gabinete de divulgação do European Southern Observatory (ESO).

Rebecca Barnes, HE Space Operations para a ESA – European Space Agency, é a responsável pela educação do Departamento de Ciência e Exploração Robótica da ESA. Tem uma licenciatura em Física com Astrofísica pela Universidade de Leicester, Reino Unido, e trabalhou antes nos departamentos de educação e comunicações espaciais do UK’s National Space Centre. Para saber mais sobre as atividades de educação do Departamento de Ciência e Exploração Robótica da ESA, contacte Rebecca pelo email SciEdu@esa.int

Review

Este artigo explica de uma forma simples e compreensível como os raios X e raios gama são captados de fontes cósmicas usando telescópios espaciais modernos e fornece algumas imagens dramáticas.

Para os professores de ciências de escolas de primeiro ciclo, o artigo pode fornecer uma motivação para a construção de um modelo de telescópio nas aulas, por exemplo recorrendo a materiais reciclados – ou usar um modelo de satélite descarregável do site da ESAw4. As imagens coloridas também podem fazer parte de uma exposição da turma.

Os professores de ciência ou de física de alunos dos segundo e terceiro ciclos podem ligar-se ao tópico de técnicas de imagem em raios gama recorrendo a uma câmara escura. Isto seria apropriado em aulas de ótica, enfatizando que tanto a câmara escura como a produção de imagens máscara-codificadas funcionam sem lente ótica.

As imagens recolhidas pelos observatórios da ESAw4 seriam um apoio útil para ensinar observação espacial, ajudando os alunos a familiarizarem-se com diferentes fenómenos astronómicos (e.g. galáxias, buracos negros, supernovas, estrelas de neutrões, ou a aniquilação de matéria e antimatéria) mencionados no artigo. Também poderiam encorajar os alunos a fazer alguma investigação por conta própria em áreas relacionadas, dentro do currículo.

Para os professores de alunos mais velhos, poderia ser interessante discutir o tipo de telescópio para a Astronomia de altas energias que está a bordo dos observatórios espaciais XMM-Newton e INTEGRAL e as técnicas usadas para filtrar os dados até que as imagens são totalmente extraídas (isto poderia ser ligado a aulas de tecnologias). Os alunos poderiam comparar a estrutura dos telescópios da zona de alta energia do espetro com aquela de um telescópio ótico e investigar as dificuldades encontradas aquando da respetiva construção.

Stephanie Maggi-Pulis, Malta

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