Cancros infecciosos: a história do ADN Understand article

Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Como é que uma célula se torna cancerosa - e como nasce um cancro infeccioso? No segundo de dois artigos sobre cancros transmissíveis, Elizabeth Murchison explica o que nos dizem os detalhes genéticos.

Diabo-da-Tasmânia
Imagem cortesia de Wayne
McLean/Wikipedia

A Dra Elizabeth Murchison descreve o seu trabalho como “arqueologia molecular “: em vez de examinar pedras e ossos antigos, ela analisa minuciosamente as moléculas de ADN, procurando identificar as mutações fundamentais que alteraram a natureza das células em que residem.

O objectivo da Dra. Murchison é escrever a história de uma doença particularmente séria, a doença do tumor facial do diabo, DTFD, explicando como surgiu e se espalhou. Esta doença infecciosa não é causada por vírus ou bactérias, mas por células tumorais que adquiriram a capacidade de passar de um indivíduo para outro, produzindo tumores fatais em cada novo hospedeiro. Apesar de não infectar seres humanos, a DTFD é tão virulenta que, mesmo tendo surgidohá poucas décadas, está já a ameaçar de extinção a espécie que afecta – o diabo-da -Tasmânia.

Cancro arqueológico

A sequência de nucleótidos do tumor da DTFD actual pode considerar-se um registo arqueológico que consiste no genoma do tumor original, de há cerca de 30 anos, e nas mutações que se acumularam desde então. “Como arqueólogos moleculares, juntamos as variações genómicas que encontramos hoje e tentamos averiguar quais ocorreram no tumor original e quais ocorreram depois”, diz a Dra. Murchison.

Mapa que mostra a
propragação da DFDT na
Tasmânia em 2007

Imagem de domínio público;
fonte: Wikipedia

Todos os cancros, não apenas os transmissíveis, surgem quando uma célula acumula mutações. Cada vez que uma célula se divide e o seu ADN é copiado, há possibilidade de aparecerem novas mutações. As mutações podem também ser causadas por agentes cancerígenos, como o fumo de cigarro ou a infecção pelo vírus do papiloma humano (VPH, ou HPV, em inglês). Certas mutações que aumentam o risco de cancro podem também ser herdadas, como o gene BRCA1, que está associado ao cancro da mama.

Tipicamente, o ADN de células humanas tumorais sofreu entre 1000 e 5000 mutações, embora este número possa chegar a 100000 ou mais, em caso de exposição prolongada ao agente cancerígeno.

Mutações surpreendentemente escassas

Fonte: Wikipedia

Tendo em conta as propriedades excepcionais e a raridade do cancro transmissível, a equipa da Dra. Murchison esperava que o cancro DFDT tivesse muito mais mutações do que os cancros humanos, mas não é isso que se passa. “Estimamos que a DFDT tem cerca de 20000 mutações, menos do que alguns cancros humanos “, diz ela. “Isto sugere que o cancro transmissível não necessita de um grande número de mutações, mas apenas de determinadas mutações que lhe permitem disseminar-se e sobreviver num novo hospedeiro.”

A equipa está agora a tentar identificar essas mutações-chave. O primeiro passo foi obter a informação genética de células normais do diabo-da-Tasmânia, para poder compará-la com o ADN do tumor. “Visto que não havia um genoma de referência, tivémos de começar por sequenciar o genoma do diabo-da-Tasmânia” diz a Dra. Murchison. “Se sequenciássemos apenas o genoma de células cancerosas, não tínhamos maneira de saber quais os genes que sofreram mutações e quais os normais.”Foi um grande desafio, equivalente ao estabelecimento do genoma humano de referênciaw1.

O passo seguinte, comparar o ADN de tumores DFDT com o genoma de referência, também não foi tão simples quanto pode parecer. A doença surgiu pela primeira vez na década de 1980, por isso, quando comparamos o genoma de um tumor DFDT com o genoma de referência, não sabemos se as variações observadas ocorreram no tumor original ou posteriormente, ao longo dos últimos 30 anos. Para distinguir as mutações que originaram a doença das que ocorreram mais tarde, a equipa está a fazer uma análise em grande escala, sequenciando o ADN de centenas de diabos-da-Tasmânia normais e comparando-o com o ADN de centenas de tumores DFDT.

Os resultados obtidos até agora mostram que o tumor transmissível original ocorreu num diabo-da-Tasmânia fêmea, porque o genoma do tumor contém dois cromossomas X. Também se identificou a base genética de uma alteração-chave: a capacidade do tumor de se esconder do sistema imunitário do novo hospedeiro, através da supressão de um gene que produz o sinal molecular que distingue “amigo de inimigo” em células normais. Esta descoberta, juntamente com a extrema semelhança genética de toda a população de diabos-da-Tasmânia, explica o facto de as células de um indivíduo serem capazes de proliferar em outro indivíduo sem desencadear uma resposta imunitária. Estes dados estão já a ser usados no desenvolvimento de uma vacina contra a DFDT. O estudo da evolução da linha celular do tumor DFDT durante a sua propagação na Tasmânia revelou que há vários subtipos genéticos do tumor.

A Dra. Murchison está também a estudar a outra forma conhecida de cancro transmissível – o tumor canino venéreo transmissível (TCVT; sigla inglesa, CTVT), que ocorre em cães. Aqui, como em DFDT, o objectivo é juntar os perfis genéticos dos animais em que surgiram os tumores originais e traçar o seu percurso evolutivo (ver caixa).
 

 Genética do tumor canino venéreo transmissível

A análise genética revelou que os tumores caninos transmissíveis que observamos hoje têm um antepassado comum, que surgiu há 11000 anos!, e forneceu detalhes sobre a aparência desse cão em que a doença apareceu pela primeira vez, representada neste esboço.  

Esboço do cão em que TVCT apareceu pela primeira vez, há 11000 anos, de acordo com a análise genética
Imagem cortesia de Emma Werner

Nome do gene

Caracterísitcas físicas asssociadas

ASIP

Pêlo de cor “Agouti” (mista)

CBD103

Provavelmente, pêlo preto

KRT71

Pêlo liso ou ondulado

FGF5

Pêlo curto

IGF1

Tamanho médio ou grande

BMP3

Provavelmente, focinho afilado

MGAM

Adaptado a dieta de amido e carne

Lutando pela sobrevivência

Voltando à Tasmânia, as pessoas que lutam pela conservação dos diabos-da-Tasmânia não contam apenas com a investigação para lidar com a ameaça da DFDT. Está em curso um projecto de conservação da vida selvagem que inclui o estabelecimento, na sua pequena ilha, de uma nova população de diabos-da-Tasmânia saudáveis ​​e não infectados, separada da população principal. Assim, enquanto o trabalho científico para entender esta doença devastadora continua, o futuro destes animaizinhos ferozes parece um pouco mais risonho. “Estamos todos muito empenhados em fazer algo para ajudar o diabo”, diz a Dra. Murchison.


Web References

  • w1 – O genoma humano foi determinado pelo Projecto Genoma Humano. Para mais informações, visite o project website.

Resources

  • Para uma introdução à DFDT, veja o primeiro dos dois artigos da Science in School sobre o tópico:
  • Watt S (2015) Infectious cancers. Science in School 32: 6–9.
  • Leia mais sobre a DFDT e sobre os esforços para salvar o diabo-da-Tasmânia.
  • Veja uma lição de Elizabeth Murchison sobre o seu trabalho, destinada a uma audiência não especializada.
  • Para um artigo sobre cancros transmissíveis, veja:
  • Giles C (2010) Sympathy for the devil. Wellcome News 62: 8–9
  • Faça downolad deste número de Wellcome News, Wellcome Trust website.

Author(s)

Susan Watt é escritora e editora de ciência independente. Estudou ciências naturais na Universidade de Cambridge, Reino Unido, e trabalhou para várias editoras e instituições de investigação do Reino Unido. Dedica-se principalmente a educação em ciência e psicologia.

Review

A segunda parte da história da DFDT incide na genética de cancros transmissíveis. A DFDT é uma doença terrível que está a reduzir a população de diabos-da-Tasmânia.

O artigo pode ser usado como base para explorar tópicos interessantes, como “arqueologia molecular “, ADN/sequenciação de genomas, ou os aspectos imunitários de cancros normais e transmissíveis. Uma ideia talvez ainda mais interessante vem do último parágrafo do texto, que descreve uma estratégia de conservação do diabo-da-Tasmânia. É um bom ponto de partida para um debate sobre as preocupações éticas e os limites dos esforços de conservação:

  1. Devemos interferir no processo de selecção natural?

Ou, em alternativa, devemos salvar uma espécie ameaçada por causas naturais?

  1. À luz das descobertas de Charles Darwin sobre os tentilhões das Galápagos, teremos nós o direito de seleccionar e separar um grupo de indivíduos da população principal? Que consequências pode ter para uma espécie o isolamento reprodutivo das suas populações?

Este artigo, tal como o primeiro da série, incentiva os professores de biologia a aprofundar os seus conhecimentos sobre estes tópicos.

Luis M. Aires, Escola Secundária Antonio Gedeão, Portugal

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