Cancros infecciosos: a história do ADN Understand article
Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Como é que uma célula se torna cancerosa - e como nasce um cancro infeccioso? No segundo de dois artigos sobre cancros transmissíveis, Elizabeth Murchison explica o que nos dizem os detalhes genéticos.
A Dra Elizabeth Murchison descreve o seu trabalho como “arqueologia molecular “: em vez de examinar pedras e ossos antigos, ela analisa minuciosamente as moléculas de ADN, procurando identificar as mutações fundamentais que alteraram a natureza das células em que residem.
O objectivo da Dra. Murchison é escrever a história de uma doença particularmente séria, a doença do tumor facial do diabo, DTFD, explicando como surgiu e se espalhou. Esta doença infecciosa não é causada por vírus ou bactérias, mas por células tumorais que adquiriram a capacidade de passar de um indivíduo para outro, produzindo tumores fatais em cada novo hospedeiro. Apesar de não infectar seres humanos, a DTFD é tão virulenta que, mesmo tendo surgidohá poucas décadas, está já a ameaçar de extinção a espécie que afecta – o diabo-da -Tasmânia.
Cancro arqueológico
A sequência de nucleótidos do tumor da DTFD actual pode considerar-se um registo arqueológico que consiste no genoma do tumor original, de há cerca de 30 anos, e nas mutações que se acumularam desde então. “Como arqueólogos moleculares, juntamos as variações genómicas que encontramos hoje e tentamos averiguar quais ocorreram no tumor original e quais ocorreram depois”, diz a Dra. Murchison.
Todos os cancros, não apenas os transmissíveis, surgem quando uma célula acumula mutações. Cada vez que uma célula se divide e o seu ADN é copiado, há possibilidade de aparecerem novas mutações. As mutações podem também ser causadas por agentes cancerígenos, como o fumo de cigarro ou a infecção pelo vírus do papiloma humano (VPH, ou HPV, em inglês). Certas mutações que aumentam o risco de cancro podem também ser herdadas, como o gene BRCA1, que está associado ao cancro da mama.
Tipicamente, o ADN de células humanas tumorais sofreu entre 1000 e 5000 mutações, embora este número possa chegar a 100000 ou mais, em caso de exposição prolongada ao agente cancerígeno.
Mutações surpreendentemente escassas
Tendo em conta as propriedades excepcionais e a raridade do cancro transmissível, a equipa da Dra. Murchison esperava que o cancro DFDT tivesse muito mais mutações do que os cancros humanos, mas não é isso que se passa. “Estimamos que a DFDT tem cerca de 20000 mutações, menos do que alguns cancros humanos “, diz ela. “Isto sugere que o cancro transmissível não necessita de um grande número de mutações, mas apenas de determinadas mutações que lhe permitem disseminar-se e sobreviver num novo hospedeiro.”
A equipa está agora a tentar identificar essas mutações-chave. O primeiro passo foi obter a informação genética de células normais do diabo-da-Tasmânia, para poder compará-la com o ADN do tumor. “Visto que não havia um genoma de referência, tivémos de começar por sequenciar o genoma do diabo-da-Tasmânia” diz a Dra. Murchison. “Se sequenciássemos apenas o genoma de células cancerosas, não tínhamos maneira de saber quais os genes que sofreram mutações e quais os normais.”Foi um grande desafio, equivalente ao estabelecimento do genoma humano de referênciaw1.
O passo seguinte, comparar o ADN de tumores DFDT com o genoma de referência, também não foi tão simples quanto pode parecer. A doença surgiu pela primeira vez na década de 1980, por isso, quando comparamos o genoma de um tumor DFDT com o genoma de referência, não sabemos se as variações observadas ocorreram no tumor original ou posteriormente, ao longo dos últimos 30 anos. Para distinguir as mutações que originaram a doença das que ocorreram mais tarde, a equipa está a fazer uma análise em grande escala, sequenciando o ADN de centenas de diabos-da-Tasmânia normais e comparando-o com o ADN de centenas de tumores DFDT.
Os resultados obtidos até agora mostram que o tumor transmissível original ocorreu num diabo-da-Tasmânia fêmea, porque o genoma do tumor contém dois cromossomas X. Também se identificou a base genética de uma alteração-chave: a capacidade do tumor de se esconder do sistema imunitário do novo hospedeiro, através da supressão de um gene que produz o sinal molecular que distingue “amigo de inimigo” em células normais. Esta descoberta, juntamente com a extrema semelhança genética de toda a população de diabos-da-Tasmânia, explica o facto de as células de um indivíduo serem capazes de proliferar em outro indivíduo sem desencadear uma resposta imunitária. Estes dados estão já a ser usados no desenvolvimento de uma vacina contra a DFDT. O estudo da evolução da linha celular do tumor DFDT durante a sua propagação na Tasmânia revelou que há vários subtipos genéticos do tumor.
A Dra. Murchison está também a estudar a outra forma conhecida de cancro transmissível – o tumor canino venéreo transmissível (TCVT; sigla inglesa, CTVT), que ocorre em cães. Aqui, como em DFDT, o objectivo é juntar os perfis genéticos dos animais em que surgiram os tumores originais e traçar o seu percurso evolutivo (ver caixa).
Genética do tumor canino venéreo transmissível
A análise genética revelou que os tumores caninos transmissíveis que observamos hoje têm um antepassado comum, que surgiu há 11000 anos!, e forneceu detalhes sobre a aparência desse cão em que a doença apareceu pela primeira vez, representada neste esboço.
Nome do gene |
Caracterísitcas físicas asssociadas |
---|---|
ASIP |
Pêlo de cor “Agouti” (mista) |
CBD103 |
Provavelmente, pêlo preto |
KRT71 |
Pêlo liso ou ondulado |
FGF5 |
Pêlo curto |
IGF1 |
Tamanho médio ou grande |
BMP3 |
Provavelmente, focinho afilado |
MGAM |
Adaptado a dieta de amido e carne |
Lutando pela sobrevivência
Voltando à Tasmânia, as pessoas que lutam pela conservação dos diabos-da-Tasmânia não contam apenas com a investigação para lidar com a ameaça da DFDT. Está em curso um projecto de conservação da vida selvagem que inclui o estabelecimento, na sua pequena ilha, de uma nova população de diabos-da-Tasmânia saudáveis e não infectados, separada da população principal. Assim, enquanto o trabalho científico para entender esta doença devastadora continua, o futuro destes animaizinhos ferozes parece um pouco mais risonho. “Estamos todos muito empenhados em fazer algo para ajudar o diabo”, diz a Dra. Murchison.
Web References
- w1 – O genoma humano foi determinado pelo Projecto Genoma Humano. Para mais informações, visite o project website.
Resources
- Para uma introdução à DFDT, veja o primeiro dos dois artigos da Science in School sobre o tópico:
- Watt S (2015) Infectious cancers. Science in School 32: 6–9.
- Leia mais sobre a DFDT e sobre os esforços para salvar o diabo-da-Tasmânia.
- Veja uma lição de Elizabeth Murchison sobre o seu trabalho, destinada a uma audiência não especializada.
- Para um artigo sobre cancros transmissíveis, veja:
- Giles C (2010) Sympathy for the devil. Wellcome News 62: 8–9
- Faça downolad deste número de Wellcome News, Wellcome Trust website.
Review
A segunda parte da história da DFDT incide na genética de cancros transmissíveis. A DFDT é uma doença terrível que está a reduzir a população de diabos-da-Tasmânia.
O artigo pode ser usado como base para explorar tópicos interessantes, como “arqueologia molecular “, ADN/sequenciação de genomas, ou os aspectos imunitários de cancros normais e transmissíveis. Uma ideia talvez ainda mais interessante vem do último parágrafo do texto, que descreve uma estratégia de conservação do diabo-da-Tasmânia. É um bom ponto de partida para um debate sobre as preocupações éticas e os limites dos esforços de conservação:
- Devemos interferir no processo de selecção natural?
Ou, em alternativa, devemos salvar uma espécie ameaçada por causas naturais?
- À luz das descobertas de Charles Darwin sobre os tentilhões das Galápagos, teremos nós o direito de seleccionar e separar um grupo de indivíduos da população principal? Que consequências pode ter para uma espécie o isolamento reprodutivo das suas populações?
Este artigo, tal como o primeiro da série, incentiva os professores de biologia a aprofundar os seus conhecimentos sobre estes tópicos.
Luis M. Aires, Escola Secundária Antonio Gedeão, Portugal