O mistério do altruísmo Understand article
Traduzido por Maria João Fonseca. Será que o altruísmo verdadeiro existe? E poderá a ciência responder a esta questão?
A origem da bondade é um mistério. De onde vêm a generosidade e o altruísmo? Terão sido herdados nas asas na selecção natural – uma dádiva que nos foi concedida através da lenta marcha evolutiva de amebas sacrificiais, pinguins benevolentes e babuínos caridosos? Ou será o altruísmo um refinamento único, um triunfo humano singular sobre a ‘natureza selvagem e indomável’ (‘nature red in tooth and claw’)? Charles Darwin chamou a este o único grande enigma, e pensadores têm desde então tentado desvendá-lo.
Aqui reside o mistério: se a evolução é um processo de sobrevivência do mais apto, e o altruísmo é um comportamento que reduz a aptidão, porque é que encontramos actos altruístas por toda a parte na natureza? Consideremos as formigas-pote-de-mel dos desertos Americanos, penduradas de pernas para o ar, como grandes potes de água açucarada, perpetuamente, à espera de serem sorvidas pela rainha e sua prole quando estiverem com sede; ou as gazelas, a saltar de forma conspícua para cima e para baixo para alertar o seu grupo que um leão se esconde na vegetação; ou, até mesmo a planta Impatiens pallida que, quando a luz do sol escasseia, não a desperdiça ao investir na criação de folhas, mas que alternativamente investe em caules e raízes, de forma a poder partilhar a luz do sol com todos. Estes são apenas alguns entre milhares de exemplos disponíveis no mundo natural.
O altruísmo biológico é definido pelo resultado de uma acção: se uma ameba age de uma determinada maneira para reduzir a sua própria aptidão, de forma a beneficiar outra, então ela é uma altruísta. (Sabe-se que certas espécies de amebas sociais se sacrificam pelos seus pares.) O altruísmo humano, ou psicológico, por sua vez, está relacionado com a intenção: se eu ajudar uma senhora de idade a atravessar a rua movido pela intenção secreta de ser incluído no seu testamento, então não sou considerado um altruísta, mesmo que um camião me atropele e eu morra durante esse processo. Ainda assim, haverá uma ligação entre os actos altruístas nas amebas e o altruísmo em humanos? Afinal, tal como as acções da minúscula ameba desprovida de cérebro, o cérebro que nos permite a nós humanos agir de forma generosa, é um produto da evolução.
Desde Darwin, e na realidade muito antes, nós temos tentado resolver estes enigmas. Em especial, temos estado interessados em perceber se o altruísmo verdadeiro existe mesmo. ‘Arranha um altruísta e vê um egoísta sangrar,’ alguns filosofam. Será desta forma que devemos explicar a vida dos laureados com Nobel da Paz Albert Schweitzer e Madre Teresa? Ou um soldado que se atira para uma granada para proteger os seus companheiros? Os cínicos diriam que, de forma consciente ou não, o sacrifício é sempre desencadeado por motivos ulteriores.
A história ensina que quando se considera a relação entre a natureza e a moral, deparamo-nos frequentemente com o que se designa por Guilhotina de Hume (descrita pelo filósofo Escocês David Hume [1711–1776] e muitas vezes designada erroneamente por ‘a falácia naturalista’). Isto é, o erro de confundir aquilo que é com aquilo que deveria ser; ou, aquilo que observamos na natureza com uma regra para o nosso próprio comportamento (Hume, 1739). Isto é importante no que diz respeito ao altruísmo, uma vez que desde Darwin, a ciência tem vindo a providenciar um número de explicações para a evolução de traços sacrificiais.
Uma destas explicações é o nepotismo: quanto mais próxima a relação genética, maior a probabilidade de altruísmo. Isto foi formalizado em álgebra pelo falecido biólogo evolucionista Britânico Bill Hamilton, que declarou que um traço genético para o altruísmo deveria disseminar-se através de uma população se:
rB > C
em que r é a relação genética entre dois indivíduos, B é o benefício reprodutivo obtido por quem tira proveito do acto altruísta, e C é o custo reprodutivo para o individuo que desempenha o acto altruísta (Hamilton, 1964a, 1964b). Será que isto significa que é natural ajudar quem nos é próximo, mas não natural ajudar estranhos?
Talvez não. Outra explicação é a reciprocidade simples: um indivíduo deve ajudar outro na expectativa de ser ajudado como retribuição. Relacionada com isto está a questão da confiança: se eu não puder mostrar aos outros que podem confiar em mim, não sobreviverei num mundo que depende da cooperação.
Uma terceira explicação é a selecção de grupo: aqueles grupos que usam o altruísmo como uma cola social para ajudar a cimentar a coesão, terão um desempenho superior aos grupos de indivíduos não cooperantes.
Mas será que estas explicações deixam espaço para o altruísmo verdadeiro? As explicações satisfazem o céptico, uma vez que se baseiam em último grau na lógica do egotismo: vale a pena ajudar os outros, ou mesmo o grupo, se isto nos beneficia. E se é isso que os modelos e teorias mostram, apoiados em observações empíricas, então talvez o verdadeiro altruísmo seja apenas um sonho. Mais perigosa ainda é a ideia de que se evoluímos para ser altruístas apenas por motivos egoístas, talvez não devêssemos sequer tentar comportarmo-nos como verdadeiros altruístas.
Um cientista que tentou desvendar este mistério foi o geneticista populacional Norte-americano George Price. Ao derivar uma equação no final da década de 60 a que mais tarde seria dado o seu nome, Price chegou à conclusão que, se o altruísmo podia ser explicado matematicamente, não era verdadeiro altruísmo. A abnegação estava sempre comprometida – isto era o que ele acreditava que a sua equação parecia indicar (Price, 1970).
Para George Price, esta foi uma constatação terrível e ele manifestou-se como uma espécie de anjo aos desalojados de Londres, Reino Unido, determinado a refutar a mesma matemática que construiu. No final, após ter dado tudo o que lhe pertencia, tornou-se ele próprio um desalojado, tendo cometido suicídio num frio edifício abandonado de Londres em 1975.
A ciência é uma ferramenta poderosa para compreender o mundo. A neurogenética e os estudos de imagiologia por ressonância magnética estão a tentar encontrar os genes responsáveis pelo altruísmo e as regiões específicas do cérebro que desempenham um papel no comportamento altruísta (Churchland, 2011). Mas precisamente por causa disto, temos que nos lembrar do destino de George Price: a sua história é uma personificação do próprio paradoxo do altruísmo. Demonstra que as ferramentas da ciência nem sempre são relevantes para o tipo de questões em que estamos interessados, nomeadamente como nos devemos comportar. Se formos capazes de responder a todas as questões científicas que pudermos colocar, será que isto explica tudo o que queremos compreender? A história de George Price demonstra que a resposta a esta questão é ‘não’.
Agradecimento
Este artigo foi adaptado a partir de um artigo anterior por Oren Harmanw1, publicado na página de Internet da Forbes.
References
- Churchland P (2011) Braintrust: What Neurobiology Tells Us About Morality. Princeton, NJ, EUA: Princeton University Press. ISBN: 9780691137032
- Hamilton WD (1964a) The genetical evolution of social behaviour I. Journal of Theoretical Biology 7(1): 1-16. doi: 10.1016/0022-5193(64)90038-4
- Hamilton WD (1964b) The genetical evolution of social behaviour II. Journal of Theoretical Biology 7(1): 17-52. doi: 10.1016/0022-5193(64)90039-6
- Harman O (2010) The Price of Altruism: George Price and the Search for the Origins of Kindness. Nova Iorque, NY, EUA: W.W. Norton. ISBN: 9780393067781
- Hume D (1739) A Treatise on Human Nature. Cheapside, Reino Unido: John Noon
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O texto está disponível gratuitamente online através de Project Gutenberg.
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- Price GR (1970) Selection and covariance. Nature 227: 520-521. doi: 10.1038/227520a0
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Web References
- w1 – Este artigo é baseado num artigo por Oren Harman disponível na página de Internet da Forbes.
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Também na página de Internet da Forbes, veja um vídeo em que Oren Harman discute a história por trás do seu último livro, The Price of Altruism.
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Resources
- O filósofo Elliot Sober e o biólogo David Sloan Wilson tentam reconciliar o altruísmo, evolucionário e psicológico, com as descobertas científicas que parecem representar a natureza como ‘violenta e indomável’ (‘red in tooth and claw’).
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Sober E, Wilson DS (1998) Unto Others: The Evolution and Psychology of Unselfish Behavior. Cambridge, MA, EUA: Harvard University Press. ISBN: 978-0674930476
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- Para descobrir porque é que o psicólogo Steven Pinker não apoia a ideia de selecção de grupo, veja o seu ensaio ‘The false allure of group selection’.
Review
O altruísmo é um comportamento observado em todos os tipos de organismos, contudo as suas causas permancecem um mistério. Neste artigo, Oren Harman explora as causas plausíveis do altruísmo e se o altruísmo verdadeiro existe nos humanos.
Este não é um artigo de ciência no sentido estrito; poderia ser utilizado de forma igualmente fácil numa aula de estudos sociais. Os professores poderiam usar o artigo como base de discussão de muitos tópicos que ligam assuntos de ciência e estudos sociais: por exemplo, selecção natural e altruísmo; a base genética do altruísmo; altruísmo e a aptidão do grupo; e formulações matemáticas para o altruísmo. O artigo poderia ser utilizado para alunos do ensino secundário de qualquer grupo de idades, particularmente para aqueles que se encontram entre os 15-19 anos.
O artigo poderia ser utilizado num exercício de compreensão, com possíveis questões que incluem:
- Porque é que o altruísmo é considerado um comportamento que reduz a aptidão do organismo individual?
- Algumas pessoas acreditam que o altruísmo verdadeiro não existe nos humanos. Porque será?
- O altruísmo é um comportamento que poderia ter um papel na selecção natural. Usa um exemplo específico para justificar esta ideia.
- ‘Se o altruísmo pudesse ser explicado matematicamente, nunca seria verdadeiramente aquilo que parece.’ Explica o que isto significa.
Michalis Hadjimarcou, Chipre