Para lá do espectro do autismo Understand article
Traduzido por Guadalupe Jácome. Investigação sobre a genética do espectro de autismo tem aumentado a nossa compreensão destas perturbações e pode levar a melhores métodos de as diagnosticar e de lidar com elas.
O meu primeiro encontro com o autismo foi no verão de 2004 quando trabalhei como conselheiro de um campo de férias. Nesse ano destacou-se um rapaz: chamava-se Peter mas todos lhe chamavam ‘o professor’. Peter sabia muito e lia muito; para os outros parecia um génio. No entanto tinha dificuldade em fazer amigos e basicamente brincava sozinho.
O pessoal ficou preocupado quando se apercebeu de que Peter não se ria das piadas, evitava olhar as pessoas nos olhos e ficava furioso se não podia sentar-se no local do costume. O diretor do campo pensou que ele poderia ser autista. Os pais do Peter admitiram, então, que ele fora diagnosticado com sindroma de Asperger mas que não o tinham mencionado porque o Peter queria muito ir para o campo. ‘O professor’ pôde ficar no campo até ao fim e todos nós aprendemos muito com ele.
O sindroma de Asperger pertence a um grupo de perturbações semelhantes entre si
A minha experiência com o Peter fez-me querer perceber e investigar a base biológica do sindroma de Asperger, uma das três perturbações com sintomas semelhantes embora distintos (ver caixa sobre perturbações incluídas no espectro do autismo) que estão classificadas como perturbações do espectro do autismo (PEA). Estas perturbações manifestam-se na primeira infância e continuam durante toda a vida. Por vezes as pessoas não se apercebem de que as têm. Os sintomas mais comuns incluem a falta de contacto visual e dificuldades na manutenção de relacionamentos, muitas vezes associadas a dificuldade de aprendizagem (figura 1). Pode ser difícil para as pessoas nesta situação integrar-se na sociedade ou ter uma vida independente.
Perturbações incluídas no espectro do autismo
As perturbações incluídas no espectro do autismo (PEA) são definidas por dificuldades de comunicação, sociais e de comportamento (figura 1). Falamos de um “espectro” porque pessoas diferentes apresentam sintomas diferentes e com vários graus de severidade. Há três subtipos – sindroma de Asperger, autismo clássico e perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação (para o qual a sigla inglesa é: PDD-NOS) – com sintomas e severidade variáveis. (figura 2 e tabela 1).
Autismo clássico |
Asperger’s syndrome |
Perturbação global do desenvolvimento sem outra especificação |
|
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Início |
Primeira infância |
Geralmente início mais tardio |
Não especificado |
Domínio social |
Deficiente |
Deficiente |
Pelo menos dois destes três estão afetados |
Domínio da linguagem |
Deficiente |
Não deficiente |
|
Domínio do comportamento |
Deficiente |
Deficiente |
|
IQ |
Alto funcionamento: QI >70; baixo funcionamento QI < 70 |
IQ > 70 |
IQ > 35 |
As PEA têm causas genéticas e também ambientais
A prevalência das PEA na população em geral é de cerca de 1% e está a aumentar, em especial devido ao aumento da sensibilização e a diagnósticos mais rigorosos. Estima-se que até cerca da 80% das perturbações do espectro do autismo tenham uma base genética (ver caixa sobre hereditariedade das PEA). Os geneticistas acreditam que são causadas por uma combinação de diferentes variantes de vários genes mais do que uma simples mutação ou uma variante de um gene.
Se 80% das PEA são de origem genética os restantes 20% devem ser explicados por fatores ambientais. Só relativamente a alguns, poucos, fatores ambientais se demonstrou haver um aumento do risco de PEA, neles se incluem a idade dos pais e a infeção da rubéola durante a gravidez. Apesar do receio, amplamente propalado no Reino Unido, não existe qualquer indício que sugira que as vacinas aumentem o risco de desenvolver PEA w1, w2.
Outro fator de risco é o género: os rapazes têm quatro vezes mais probabilidade de ser diagnosticados com PEA que as raparigas. Talvez alguns dos fatores de risco residam no cromossoma X (do qual os rapazes só têm uma cópia o que significa que não possuem um segundo cromossoma saudável para compensar) ou em genes que são ativados durante o desenvolvimento masculino.
Algumas outras perturbações como a do X frágil, apresentam sintomas semelhantes às PEA: cerca de 50% destas pessoas têm sintomas semelhantes aos do autismo. Os pacientes com X frágil têm uma mutação no gene FMR1 que altera uma proteína essencial para o funcionamento normal do cérebro.
Herdabilidade das PEA
O estudo de gémeos demonstrou que as causas das PEA são largamente genéticas (até 80%). Estes estudos analisaram gémeos que cresceram juntos e em que pelo menos uma das crianças tem PEA. Os gémeos monozogóticos (idênticos) têm a mesma informação genética enquanto os gémeos dizigóticos (não idênticos) são como quaisquer outros irmãos: partilham cerca de metade da sua informação genética mas foram sujeitos a muitos dos mesmos fatores ambientais (p. ex. pais e cuidados em casa).
Se uma perturbação tem uma base puramente genética afetará sempre ambos os gémeos monozigóticos. Nos gémeos dizigóticos, se um tiver uma perturbação genética, o outro terá uma probabilidade de 50% de também a ter. Estudos demonstraram que se um gémeo tem uma PEA, a probabilidade de o outro gémeo ser afetado é de 80% em gémeos idênticos e de 30% em gémeos não idênticos; estes números incluem ambas as componentes, genética e ambiental, partilhadas pelos gémeos. A partir destes dados, estimou-se que a componente genética das PEA é de 50 – 80%, o restante é ambiental. Então, para que uma pessoa desenvolva PEA, é necessário que exista uma predisposição genética e um fator ambiental que a desencadeie.
As PEA estão ligadas à plasticidade sináptica
A investigação genética em PEA procura identificar as variações que lhe estão associadas. Os investigadores estão a determinar os genótipos de pessoas com PEA e dos seus pais para identificar padrões específicos de transmissão de alelos de alto risco. Os meus colaboradores e eu estamos também a comparar o DNA de pessoas saudáveis com o de pessoas diagnosticadas com PEA.
Alguns estudos identificaram várias mutações raras e polimorfismos de base única (SNPs que são mais comuns; ver caixa) associados a PEA. Os geneticistas também descobriram que nos pacientes de PEA, variações do número de cópias afetam regiões codificantes do DNA com maior frequência que na população em geral.
Analisando as proteínas codificadas por estes genes demonstrámos que são importantes para o metabolismo energético, a síntese proteica e a transmissão do impulso entre neurónios. Parece que estas variações afetam a capacidade das células cerebrais para estabelecer e manter conexões. Este processo, chamado plasticidade sináptica, é crucial para a aprendizagem, a memória, o reconhecimento emocional e o uso da linguagem.
Variação genética
Cada um de nós é portador de muitas variações genéticas que incluem polimorfismos de base única (SNPs) e variações de número de cópias (CNVs) bem como mutações raras que estão limitadas aos pacientes com PEA. As mutações são alterações da sequência do DNA, incluindo delecções e inserções ou substituição de nucleótidos. Os SNPs ocorrem quando um único nucleótido do DNA é diferente, p. ex., num local específico do genoma, uma pessoa poderá ter um nucleótido de adenina (A) enquanto que outra poderá ter de guanina (G).
A maioria das pessoas tem duas cópias de cada gene, uma de cada progenitor. No entanto, algumas pessoas podem ter CNVs: estas pessoas podem ter mais ou menos que duas cópias de um dado gene ou mesmo não ter a totalidade da sequência.
SNPs e CNVs são normais e bastante comuns (particularmente no DNA não codificante) o que geralmente não causa problemas. Porém, algumas variações, se existirem no seio de ou perto de um gene importante, podem causar doenças. Certos SNPs, CNVs e mutações raras deletérios estão associados com PEA (figura 3).
O diagnóstico genético dá esperanças de melhor tratamento
No geral, as PEA são diagnosticadas entrevistando os pais e observando o paciente. O diagnóstico pode ser influenciado pelos pais ou pelas ideias pré-concebidas do psiquiatra. É um processo longo. Portanto, são necessários meios de diagnóstico objetivos, fiáveis e rápidos.
Conhecer quais os genes ou variações genéticas responsáveis pelas PEA torna possível construir novos meios de diagnóstico. A compreensão dos mecanismos moleculares envolvidos pode também permitir o desenvolvimento de novos medicamentos ou tratamentos.
No que me diz respeito, a principal razão para levar a cabo esta investigação é explicar a base biológica das PEA, quer para os pacientes quer para o público, para ajudar a reduzir o estigma que lhes está associado.
Web References
- w1 – a Wikipedia oferece uma boa visão geral da controvérsia em torno da vacina tríplice do sarampo, papeira e rubéola (VASPR ou MMR – sigla inglesa) no Reino Unido.
- w2 – A comunidade médica britânica também respondeu ao temor da MMR.
Resources
- Este livro está escrito do ponto de vista de um rapaz com sindroma de Asperger:
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Hadden M (2004) The Curious Incident of the Dog in the Night-Time. London, UK: Random House. ISBN: 9781400032716
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- Os fans de Jane Austen acharão fascinante e esclarecedor o estudo:
-
Ferguson Bottomer P (2007) So Odd a Mixture: Along the Autistic Spectrum in ‘Pride and Prejudice’. London, UK: Jessica Kingsley. ISBN: 9781843104995
-
- PEA da perspetiva de um professor de educação especial:
-
Rich L (2005) Casey’s Wall: A Novel. Bloomington, IN, USA: iUniverse, Inc. ISBN: 9780595378579
-
- O capítulo 16 de Bad Science documenta o receio da MMR no Reino Unido:
-
Goldacre B (2008) Bad Science. London, UK: Harper Collins. ISBN: 9780007240197
-
- O filme de animação Mary and Max (2009; realizado por Adam Elliot; Australia) conta a comovente história de dois inesperados correspondentes, Mary e o autista Max.
- A personagem de Raymond, a figura central autista do filme Rain Man (Encontro de irmãos) de 1988 é baseada numa pessoa real.
- Se estiver preocupado com um aluno, um membro da família ou um amigo, é aconselhável que fale com um médico ou psiquiatra. Não deve confiar num autodiagnóstico ou num diagnóstico baseado em ferramentas web visto que existe muita informação enganosa na internet.
- Os seguintes sites podem ajudar:
- Leitores interessados em consultar a literatura científica podem considerar úteis os seguintes artigos:
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Chiocchetti A et al. (2011) Mutation and expression analyses of the ribosomal protein gene RPL10 in an extended German sample of patients with autism spectrum disorder. American Journal of Medical Genetics Part A 155(6): 1472-1475. doi: 10.1002/ajmg.a.33977
-
Freitag CM et al. (2010) Genetics of autistic disorders: review and clinical implications. European Child & Adolescent Psychiatry 19(3): 169-178. doi: 10.1007/s00787-009-0076-x
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Hallmayer J et al. (2011) Genetic heritability and shared environmental factors among twin pairs with autism. Archives of General Psychiatry 68(11): 1095-1102. doi: 10.1001/archgenpsychiatry.2011.76
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Holt R et al. (2010) Linkage and candidate gene studies of autism spectrum disorders in European populations. European Journal of Human Genetics 18(9): 1013-1019. doi: 10.1038/ejhg.2010.69
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Leblond CS et al. (2012) Genetic and functional analyses of SHANK2 mutations suggest a multiple hit model of autism spectrum disorders. PLoS Genetics 8(2): e1002521. doi: 10.1371/journal.pgen.1002521
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A PLoS Genetics é uma revista científica de acesso livre pelo que este artigo está disponívelgratuitamente.
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Lichtenstein P et al. (2010) The genetics of autism spectrum disorders and related neuropsychiatric disorders in childhood. American Journal of Psychiatry. 167(11): 1357-1363. doi: 10.1176/appi.ajp.2010.10020223
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Liu XQ et al. (2008) Genome-wide linkage analyses of quantitative and categorical autism subphenotypes. Biological Psychiatry 64(7): 561-570. doi: 10.1016/j.biopsych.2008.05.023
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Pagnamenta AT et al. (2010) Characterization of a family with rare deletions in CNTNAP5 and DOCK4 suggests novel risk loci for autism and dyslexia. Biological Psychiatry 68(4): 320-328. doi: 10.1016/j.biopsych.2010.02.002
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Pinto D et al. (2010) Functional impact of global rare copy number variation in autism spectrum disorders. Nature 466(7304): 368-372. doi: 10.1038/nature09146
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Faça o download gratuito do artigo do website da Science in School ou assine a Nature.
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Weiss LA et al. (2009) A genome-wide linkage and association scan reveals novel loci for autism. Nature 461(7265): 802-808. doi: 10.1038/nature08490
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Faça o download gratuito do artigo do website da Science in School ou assine a Nature.
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Review
Este artigo informativo dá uma perspetiva sobre as perturbações do espectro do autismo (PEA) e suas características distintivas. Constitui uma ajuda como fonte de informação para professores que tenham alunos com PEA, para entender as mutações genéticas associadas com PEA e como um exemplo do modo como a genética e o ambiente podem afetar o fenótipo.
O artigo poderia ser usado em aulas de Biologia sobre o cérebro ou o comportamento ou em discussões sobre plasticidade sináptica. Proposta de questões:
- De que modo é que os estudos demonstram que o autismo é largamente hereditário?
- Quais os fatores de risco para o autismo?
- Que tipo de variações genéticas estão ligadas ao autismo?
Shaista Shirazi, Reino Unido