Uracilo no DNA: erro ou sinal? Understand article

Traduzido por António Daniel Barbosa. O uracilo é conhecido como uma das bases usadas no RNA, mas por que não é usado no DNA – ou será que é? Angéla Békési e Beáta G Vértessy investigam.

Timina versus uracilo

A nossa informação genética é armazenada sob a forma de DNA, usando um alfabeto de quarto letras. As quarto “letras” correspondem às quarto bases químicas que cada componente do DNA – designado por nucleótido – possui: adenina (A), timina (T), citosina (C) e guanina (G, ver Figura 1). Tal como James Watson e Francis Crick celebremente descobriram, o DNA forma uma dupla hélice na qual as quatro bases emparelham sempre da mesma maneira, através de ligação de hidrogénio específicas: a adenina liga-se à timina e a guanina à citosina (ver Figuras 2 e 3).

Figura 1: Os componentes essenciais de um nucleótido, o constituinte essencial do DNA. O açúcar desoxirribose e o grupo fosfato são invariáveis enquanto a base orgânica pode ser uma de quatro tipos: A, T, G e C. Clique na imagem para ampliar
Imagem cortesia de Nicola Graf

Figura 2: A estrutura química do DNA, mostrando o emparelhamento entre as bases A-T e G-C. As bases unidas por ligações de hidrogénio juntam as duas cadeias constituídas pelo açúcar e o fosfato. Clique na imagem para ampliar
Imagem cortesia de Madeleine Price Ball; fonte da imagem: Wikimedia Commons

Figura 3: A estrutura em dupla hélice do DNA. Clique na imagem para ampliar
Imagem cortesia de Forluvoft; fonte da imagem: Wikimedia Commons

No entanto, existe uma quinta letra alternativa: o uracilo (U), que forma o mesmo tipo de ligações de hidrogénio com a adenina (ver Figura 4). Apesar da utilização do uracilo no RNA ser comum, tal não acontece no DNA, onde a timina é por sua vez utilizada. Qual a razão de ser assim?

Figura 4: A guanina e a citosina estabelecem um par de bases estabilizadas por três ligações de hidrogénio, enquanto a adenina e a timina ligam-se através de duas ligações de hidrogénio. Os quadrados a vermelho salientam os grupos funcionais da citosina e da timina que são responsáveis por formar a ligação de hidrogénio. A citosina pode espontaneamente sofrer desaminação hidrolítica, que resulta na formação de uma base de uracilo com a mesma capacidade de formar ligações de hidrogénio como a timina. Clique na imagem para ampliar
Imagem cortesia de Angéla Békési

Quimicamente, a timina consiste numa molécula de uracilo com um grupo metil extra ligado. Qual será a vantagem, em termos evolutivos, de usar este componente mais complexo no DNA? A resposta pode residir na forma como as células corrigem os danos no DNA.

Figura 5: A desaminação
hidrolítica da citosina pode
mudar o aminoácido
codificado pela sequência.
Clique na imagem para
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Imagem cortesia de Nicola Graf

A citosina pode espontaneamente transformar-se em uracilo, através de um processo de desaminação hidrolítica (ver figura 4). Quanto tal acontece, a guanina que se encontrava inicialmente ligada a essa molécula de citosina passa a estar ligada ao uracilo (lembre-se que o uracilo normalmente liga-se à adenina). Quando a célula replicar o seu DNA na vez seguinte, a posição oposta a este uracilo será considerada uma adenina em vez da guanina que lá deveria estar, alterando a mensagem que esta secção do DNA codifica (ver Figura 5). Este processo de desaminação da citosina é um dos mais comuns tipos de danos do DNA, embora seja normalmente corrigido de forma eficiente. Como é que a célula faz isso?

Reparação da desaminação
hirolítica. Clique na imagem
para ampliar

Imagem cortesia de Nicola Graf

As células possuem um sistema de reparação que pode detectar quando o uracilo se encontra onde a citosina deveria estar e corrige o erro antes de este ser replicado e transmitido. A complexa maquinaria que executa essa função é constituída por diversas enzimas: primeiro uracilo-DNA glicosilases reconhecem o uracil e removem-no do DNA. Depois diversas enzimas contribuem para a eliminação e re-síntese da porção danificada do DNA, durante a qual o local abásico (“vazio”) no DNA é substituído por uma citosina (ver Figura 6).

No entanto, a forma mais comum de uracilo-DNA glicosilase não pode determinar com qual base o uracilo se encontra emparelhado, isto é se o uracilo deveria encontrar-se nesse local (se ligado à adenina) ou se resulta de uma citosina mutada (e emparelha com uma guanina); em vez disso, reconheceria e removeria os dois tipos de uracilo. Certamente, isso causaria problemas. A solução para este potencial problema pensa-se ter sido o desenvolvimento de um mecanismo no qual os uracilos “correctos” (emparelhados com a adenina) foram marcados com um grupo metilo – resultando na timina. Desta forma, se a maquinaria da célula encontrar um uracilo, este é removido e o local reparado, mas se um uracilo com um grupo metilo é encontrado – uma timina (ver Figura 4) – este é mantido. Assim, ao longo do tempo, a timina no DNA tornou-se o padrão em vez do uracilo, e a maioria das células utilizam o uracilo apenas no RNA.

Porque foi mantido o uracilo no RNA? O RNA tem um tempo de vida mais curto do que o DNA e – com algumas excepções – não é usado para armazenamento de informação genética a longo prazo, pelo que as moléculas de citosina que espontaneamente se convertem em uracilo no RNA não representam uma grande ameaça para a célula. Desta forma, não deve ter existido nenhuma pressão evolutiva para substituir o uracilo pela mais complexa (e presumivelmente mais dispendiosa) timina no RNA.

Figura 7: Se aumenta
dUTP:dTTP, a DNA
polymerase frequentemente
incorpora uracilo em vez de
timina durante a replicação e
reparação. Uracilo-DNA
glicolisase remove o uracilo e
inicia reparação posterior
que envolve quebras da
cadeia de DNA num passo
intermediário. A reparação
por síntese pode, no entanto,
reintroduzir uracilo,
conduzindo a um ciclo fútil
de reparação do DNA.
Eventualmente, este sistema
é sobrecarregado e ocorre
fragmentação cromossómica,
levando a morte celular.
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Imagem cortesia de Angéla
Békési

Morte celular sem timina

Quando o DNA é sintetizado, as enzimas de DNA polimerase (que catalisam a síntese) não conseguem distinguir entre timina e uracilo. Estas apenas verificam se as ligações de hidrogénio são estabelecidas correctamente, isto é se os pares de bases estão emparelhados correctamente. Para estas enzimas, não interessa se a timina ou o uracilo se liga à adenina. Normalmente, os níveis de desoxiuridina trifosfato (dUTP, uma fonte de uracilo) na célula são mantidos muito baixos comparativamente com os níveis de desoxitimidina trifosfato (dTTP, uma fonte de timina), prevenindo a incorporação do uracilo durante a síntese de DNA.

Se esta regulação estrita é perturbada e a razão de dUTP em relação a dTTP aumenta, a quantidade de uracilo que é incorrectamente incorporada no DNA também aumenta. O sistema de reparação – que, ao contrário das DNA polimerases, consegue distinguir o uracilo da timina – tenta depois remover o uracilo com a ajuda de uracilo-DNA glicosilase e re-sintetizar o DNA, que envolve clivar (cortar) temporariamente a cadeia de DNA. No entanto, se a razão de dUTP em relação a dTTP continua elevada, esta re-síntese pode incorporar novamente uracilo em vez de timina. Este ciclo conduz eventualmente a quebras na cadeia de DNA e fragmentação cromossómica, quando estes cortes temporários no DNA ocorrem um após o outro e demasiado próximos (ver Figura 7). Isto resulta num tipo específico de morte celular programada, designada por morte celular sem timina.

O processo de morte celular sem timina pode ser deliberadamente explorado no tratamento do cancro. Uma vez que as células cancerígenas proliferam a uma taxa muito superior comparativamente com as células normais, estas sintetizam maiores quantidades de DNA num determinado período de tempo e desta forma requerem quantidades superiores de dUTP. Através do aumento da razão de dUTP em relação a dTTP, estas células cancerígenas podem ser seleccionadas e eliminadas.

O Uracilo ainda existe no DNA

Apesar da maior parte das células usarem o uracilo no RNA e a timina no DNA, ainda existem excepções. Alguns organismos têm uracilo em vez de timina em todo o seu DNA, e outros organismos têm uracilo em apenas parte do seu DNA. Qual será a sua vantagem evolutiva? Vejamos alguns exemplos.

Uracilo no DNA viral

Representação de um vírus
fágico a infectar uma célula
bacteriana

Imagem cortesia de cdascher /
iStockphoto

Duas espécies de fagos (vírus que infectam bactérias) são conhecidos por terem genomas de DNA com apenas uracilo e sem timina. Ainda se desconhece se estes fagos representam uma forma de vida primitiva que nunca desenvolveu timina no DNA, ou se os seus genomas com uracilo são uma estratégia evolutiva recente. Também se desconhece a razão destes fagos usarem uracilo em vez de timina, porém isso poderá desempenhar um papel fundamental no ciclo de vida destes vírus. Se este for o caso, faria sentido para os vírus assegurar que o uracilo no seu DNA não é substituído por timina. De facto, tem sido demonstrado que um destes fagos possui um gene que codifica uma proteína específica que inibe a uracilo-DNA glicosilase do hospedeiro, prevenindo desta forma que o uracilo do genoma viral seja “reparado” pelas enzimas do hospedeiro.

Morte celular programada nos ciclos de vida de insectos

Os endopterygota tal como
as formigas não possuem a
enzima capaz de remover o
uracilo do seu DNA

Imagem cortesia de
spxChrome / iStockphoto and
Nicola Graf

O uracilo no DNA também parece desempenhar um papel no desenvolvimento dos endopterygota – insectos que passam pela fase de pupa durante o seu ciclo de vida (tal como as formigas e borboletas; mas não o gafanhoto e as térmitas). Estes insectos não possuem o gene principal da uracilo-DNA glicosilase, que de outra forma removeria o uracilo do seu DNA.

Além disso, a nossa investigação tem mostrado que, nas larvas da mosca da fruta Drosophila melanogaster, a razão de dUTP em relação a DTTP é regulada de forma pouco habitual: em todos os tecidos que não serão necessários no insecto adulto, existem níveis mais baixos da enzima que degrada dUTP e forma um precursor da produção de dTTP. Em consequência, quantidades significativas de uracilo são incorporadas nesses tecidos durante a síntese de DNA.

Desta forma durante a fase larval, o DNA contendo uracilo é produzido e parece não ser corrigido nos tecidos que são para degradar durante a fase de pupa. Como estes insectos não possuem a principal enzima uracilo-DNA glicosilase, na fase de pupa, factores adicionais específicos do DNA contendo uracilo podem reconhecer este uracilo acumulado como um sinal para iniciar morte celular. Nós já identificamos uma proteína específica de insectos que parece ser capaz de degradar DNA contendo uracilo, e estamos a investigar se esta enzima é usada para iniciar morte celular programada.

A presença do uracilo nas
sequências dos genes de
anticorpos desencadeia uma
resposta de reparação de
DNA, que tem a consequência
de aumentar a diversidade
proteica dos anticorpos. Uma
reserva de anticorpos
extensa aumenta a
probabilidade do sistema
imunitário reconhecer
invasores indesejados

Imagem cortesia de taramol /
iStockphoto

Erros benéficos: o sistema imunitário de vertebrados

No entanto, o uracilo no DNA pode ser igualmente encontrado mais próximo de casa – no sistema imunitário de vertebrados como nós. Parte do nosso sistema imunitário, o sistema imune adquirido, produz um grande número de diferentes anticorpos que estão treinados para nos proteger de agentes patogénicos específicos. Para aumentar o número de anticorpos diferentes que podem ser criados, nós misturamos a sequência de DNA nas regiões que para eles codificam, não apenas pela recombinação de sequências existentes nas células mas também pela da criação de novas sequências através do vasto aumento das taxas de mutação, conhecidas como hipermutação.

A hipermutação inicia-se com uma enzima específica (uma desaminase induzida por activação) que transforma a citosina em uracilo (ver Figura 4) em loci de DNA específicos, provocando uma reposta de reparação com tendência para o erro, que o organismo usa em seu benefício: os “erros” geram novas sequências que podem ser usadas para produzir anticorpos diferentes. Este sistema é estritamente regulado, no entanto, se ficar descontrolado, pode levar a cancro.

Quando se considera a questão do porquê do uracilo ou o porquê da timina, é necessário considerar o contexto evolutivo. Os organismos evoluíram no ambiente em constante mudança, enfrentando um conjunto dinâmico de desafios, Desta forma, a solução que evita a incorporação de erros no DNA é vantajosa para a maioria dos organismos e maioria das células, o que explica a razão de DNA contendo timina ser a norma. No entanto, em determinadas circunstâncias, os “erros” em si pode ser benéficos, razão pela qual algumas células ainda usam o uracilo no seu DNA.


Resources

Author(s)

Angéla Békési nasceu em 1977 em Kaposvár, Hungria. Em 2001, graduou-se em química pela Universidade de Ciências de Eötvös Loránd, e em teologia pela Universidade Católica de Pázmány Péter (ambas em Budapeste, Hungria), tendo ingressado no laboratório de Beáta Vértessy em 2000 como aluna de graduação. Em 2001, iniciou o seu doutoramento na regulação da reparação de DNA contendo uracilo e o processamento de uracilo em insectos em pupa. Identificou uma nova proteína que poderá ser um novo tipo de sensor de DNA contendo uracilo e obteve o seu doutoramento em bioquímica estrutural pela Universidade de Ciências Eötvös Loránd em 2007. Tem continuado o seu trabalho como cientista pós-doutorada, e foi uma embaixadora de escola no programa SET-Routes (www.set-routes.org/school/index.html).

Beáta G Vértessy nasceu em Budapeste, Hungria e estudou em ciências biológicas. Possui um mestrado pela Universidade de Chicago, Estados Unidos da América, um doutoramento pela Universidade Eötvös Loránd em Budapeste, Hungria, e Academia Húngara das Ciências, e um doutoramento pela Academia Húngara das Ciências. Desde 2002, tem sido directora de um laboratório que foca no metabolismo e reparação do genoma no Instituto de Enzimologia, Budapeste, Hungria. A investigação actual do laboratório tem como objectivo perceber a prevenção, reconhecimento e reparação do uracilo no DNA a partir de perspectivas de biologia estrutural e celular.

Review

Este artigo demonstra que a ciência nunca dorme, abalando o dogma que o uracilo existe apenas no RNA. Tal como o artigo explica, este nem sempre é o caso. E mesmo quando é, a razão pela qual deve ser?

Para ajudar os estudantes a perceber o artigo, as questões de orientação podem ser:

  1. Descreva as estruturas de ligação entre os dois pares de bases complementares no DNA.
  2. Qual das bases é substituída no RNA?
  3. Descreve e desenha um gráfico da via enzimática de reparação accionada quando o uracilo se encontra no DNA.
  4. A razão de quais moléculas pode ser ajustada para impedir as células cancerígenas de crescer e se dividirem?
  5. Porque é o uracilo “tolerado” no RNA?
  6. Quais os organismos que usam o uracilo no DNA e como?

Friedlinde Krotscheck, Austria

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CC-BY-NC-ND

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