Aves em fuga: o que torna as avestruzes tão rápidas? Understand article

Traduzido por Rita Campos. O que torna as avestruzes corredores tão velozes? Nina Schaller passou quase uma década a investigar o assunto.

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Carnemolla / iStockphoto

Ao admiramos uma gaivota a voar ou um pinguim a mergulhar, raramente pensamos que estes animais emplumados têm algo raro em comum connosco: enquanto a maior parte dos animais se move em quatro, seis ou mais pernas, as aves e os humanos são os únicos verdadeiros bípedes.

A evolução resolveu o desafio da locomoção em duas pernas de duas formas: os humanos são plantígrados (colocamos o pé todo no chão quando caminhamos ou corremos), as aves são digitígradas (caminham na ponta dos dedos, ou dígitos).

Algumas espécies de aves conseguem correr não só mais rápido que os humanos mas inclusive mais rápido do que outras aves conseguem voar. A corredora de longa distância mais rápida é a avestruz africana (Struthio camelus). A uma velocidade constante de 60 km/h e uma velocidade máxima de 70 km/h, pode correr os 42 km da maratona Olímpica em 40 minutos, por oposição às duas horas que um humano necessita. Esta notável combinação de velocidade e resistência permite que a avestruz percorra grandes distâncias para encontrar pastagens frescas ou para se distanciar de hienas famintas.

Nina e uma das suas colegas
crescidas, Tiffy

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Löffler for Bild der
Wissenschaft

Há muito que os cientistas há muito exploram os desafios da locomoção terrestre, particularmente as capacidade corredoras dos cães e dos cavalos de corrida. No entanto, os estudos sobre as formas de locomoção das aves tipicamente exploram a dinâmica do voo e prestam pouca atenção às espécies com capacidades cursoriais (as que se especializaram na corrida).

Crias de avestruz com 10
dias na sua nova casa

Imagem cortesia de Jürgen
Gass

Após terminar a minha licenciatura em Biologia, em 2002, fui voluntária no Jardim Zoológico de Frankfurt, na Alemanha, onde me fascinei pelas capacidades corredoras das avestruzes e decidi investigá-las. A hipótese para a minha investigação de doutoramento era que o sistema locomotor da avestruz transmite força para o solo com um grau de eficiência elevado, maximizando a produção de energia (velocidade e resistência) e minimizando os requisitos energéticos (trabalho muscular e metabólico).

Para testar a minha ideia, decidi estudar a forma e a função do sistema locomotor da avestruz. Através de dissecações, explorei a anatomia da avestruz, procurando por estruturas especializadas nos membros que pudessem reduzir os custos metabólicos da locomoção. Simultaneamente, estudei a biomecânica das avestruzes vivas: como é que as forças físicas actuam na sua anatomia enquanto as avestruzes se movem?

Para conseguir uma melhor observação da sequência natural do movimento, criei três avestruzes num grande cercado ao ar livre e, durante quatro anos, habituei-as à minha presença e à sua pista de corrida experimental. A confiança mútua era crucial: um pontapé de uma avestruz pode matar um leão.

Maximizando a velocidade: pernas longas e leves

Nos animais corredores, as velocidades máximas são conseguidas aumentando o tamanho e a frequência dos passos. Pernas mais compridas podem mover-se ainda mais e, se a massa muscular das pernas estiver localizada proximalmente (perto do corpo), a perna pode então balançar mais rapidamente, da mesma forma que num metrónomo mover um peso ajustável para mais perto do eixo aumenta o tempo do compasso.

Figura 1: Comprimentos do segmento linear da perna; n indica o número de espécimes examinados.
Porção solta da perna:
Osso da coxa (na horizontal): azul escuro
Tíbia: azul claro
Tarsometatarso: cor-de-laranja claro
Dedo grande: cor-de-laranja escuro.
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Imagem cortesia de Nina Schaller
Ema, Rhea americana
Imagem cortesia de Quartl; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Nandu-de-Darwin, Pterocnemia pennata
Imagem cortesia de Jennifer Bergk; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Emu, Dromaius novaehollandiae
Imagem cortesia de Quartl; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Casuar, Casuarius casuarius
Imagem cortesia de Dezidor; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Kiwi, Apteryx mantelli
Imagem cortesia de the Maungatautari Ecological Island Trust; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Geococcyx californianus (“Papa-léguas”)
Imagem cortesia de Back1a5h; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons
Pé de casuar
Imagem cortesia de Bjørn Christian Tørrissen; Fonte da Imagem: Wikimedia Commons

Para investigar este princípio, comparei os comprimentos dos segmentos das pernas (Figura 1) e a distribuição da massa muscular em espécies de aves corredoras rápidas de solo. De todas as aves cursoriais, a avestruz possui as pernas mais compridas relativamente ao seu tamanho e tem a maior distância entre pés quando corre: 5 m. Adicionalmente, num maior grau que noutras espécies, tem a maior parte da sua musculatura localizada na zona superior do osso da coxa e anca, enquanto os elementos móveis da sua perna são comparativamente mais leves, movimentados por tendões longos e delgados (Figura 2). Este arranjo optimiza a perna da avestruz para a locomoção a alta velocidade, dando-lhe um comprimento de passo longo e uma frequência de passo elevada.

Figura 2: Anatomia comparada das pernas de um humano e de uma avestruz: nas aves, o osso entre o tornozelo e os dedos dos pés, o tarsometatarso, é mais longo do que em humanos e actua como equivalente funcional à nossa tíbia, se na vertical. Nas aves, a articulação do tornozelo fica junto ao joelho, o que explica o porquê de aparentemente as aves conseguirem dobrar o ‘joelho’ para trás. A articulação do joelho, escondida entre a plumagem, encontra-se permanentemente flectida e liga-se à articulação da anca através de um osso da coxa, curto e horizontal. As linhas vermelhas unem as articulações anatomicamente equivalentes; as linhas verdes unem as articulações funcionalmente equivalentes.
Na avestruz, a massa muscular está concentrada na parte superior da perna enquanto na parte inferior prevalecem tendões longos. As áreas sombreadas mostram a distribuição dos principais músculos, as linhas azuis indicam a localização dos principais tendões. Clique na imagem para ampliar

Imagem cortesia de Nina Schaller
Figura 3: Experiência que
mostra a capacidade do
ligamento da articulação do
tornozelo para suportar
passivamente o peso que
vem de cima (apenas a parte
esquerda da perna esquerda
é mostrada). O ligamento do
tornozelo contornou a
saliência do osso (a verde)
em ambos os lados.

Quando a ligação está na sua
extensão máxima (168°), os
ligamentos em ambos os
lados (a vermelho) estão
tensos porque passaram por
essa saliência, estabilizando
a articulação.

Quando a avestruz levanta os
seus dedos do solo, a
articulação do tornozelo
flecte abaixo dos 140° e os
ligamentos (a cor-de-laranja)
ficam livres para deslizar à
volta das saliências: o
mecanismo estabilizador está
relaxado. Clique na imagem
para ampliar

Imagem cortesia de Nina
Schaller

Maximizando a resistência: articulações estáveis

Os humanos conseguem trepar às árvores ou dançar ballet graças a uma grande variedade de movimentos das articulações mas esta flexibilidade tem um custo. Quando corremos, a força muscular é usada para a propulsão e para evitar movimentos laterais das articulações, levando a que haja uma elevada custo energético para uma determinada distância. Suspeitei que as avestruzes tivessem uma abordagem mais eficiente.

Ao contrário dos músculos e dos seus tendões, que consumem muita energia, os ligamentos podem actuar como um ‘colete das articulações’, limitando os movimentos laterais sem consumir energia. Para demonstrar que este mecanismo existia, filmei as minhas avestruzes a correr de vários ângulos, para registar a variedade de movimentos das suas pernas. Depois, repeti essas medições usando uma avestruz morta e intacta e por fim usando uma perna de avestruz dissecada, removendo os músculos e tendões e deixando apenas o esqueleto e os ligamentos das articulações. A variedade de movimentos laterais das articulações na avestruz viva e morta é quase idêntico. Em contraste, uma comparação semelhante em humanos revelaria uma enorme diferença na variedade de movimentos laterais, especialmente na articulação da anca, que é estabilizada pela acção dos músculos. As minhas medições mostraram que os ligamentos são os principais elementos a guiar a perna da avestruz na passada, permitindo que a força muscular seja usada quase exclusivamente na propulsão para a frente.

Ao manipular as pernas dissecadas das avestruzes fiz uma nova descoberta. Ao tentar flectir a articulação do tornozelo, tive que vencer alguma resistência – algo inesperado num membro sem vida e desprovido de músculos. Quando libertei a articulação esta estalou de volta para uma posição estendida, sugerindo que os ligamentos estavam a manter a perna da ave estendida de forma passiva. Para testar esta teoria, exerci pressão sobre a parte superior na perna dissecada e em posição erecta até a articulação do tornozelo colapsar na posição flectida (Figura 3). Foi necessário exercer uma força de 14 kg – 28 kg de peso que uma avestruz, sobre as duas pernas, não seria obrigada a suportar enquanto anda ou corre. Este teste mostrou que poupar energia metabólica usando os ligamentos como um mecanismo passivo de estabilização da perna é uma excelente estratégia de resistência locomotora.

Fazendo contacto com o solo

Figura 4: ‘Pé’ direito de uma
avestruz. Da esquerda para a
direita: posição em pé típica
com o pequeno dedo lateral
‘navegador’ (‘outrigger’);
esqueleto do pé (as setas
vermelhas indicam a
articulação do pé elevada); o
‘pé’ visto de cima; o ‘pé’ visto
de baixo. Distal = longe do
corpo; proximal = junto ao
corpo. Clique na imagem para
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Imagem cortesia de Nina
Schaller

Já vimos que membros leves são uma condição prévia para uma locomoção rápida e eficiente e que uma das maneiras pela qual as avestruzes conseguem isso é concentrando a massa muscular da perna junto à articulação da anca. O mesmo pode ser observado noutros animais cursoriais; os cavalos modernos, por exemplo, evoluíram a partir de um antepassado com cinco dedos para galopar sobre a unha do dedo do meio – o casco. As avestruzes sofreram uma evolução semelhante: enquanto a maior parte das aves tem quatro dedos e a maioria das grandes aves não voadoras tem apenas três, a avestruz é a única ave que caminha sobre apenas dois dedos (Figura 1). Além disso, é a única ave que caminha nas pontas dos pés.

Perguntei-me como esta, a maior e mais pesada ave viva, alcançava o equilíbrio e a aderência correndo a velocidades elevadas na ponta dos pés. Como não existe um método estabelecido para investigar a função do pé em aves vivas, usei uma placa de pressão, usado regularmente por ortopedistas para analisar a distribuição da pressão nos pés humanos. Treinei as minhas avestruzes para caminharem e correrem sobre a placa, registando os dados sobre a pressão do ‘pé’ durante o contacto com o solo em tempo real e em alta resolução. Isto mostrou que o dedo grande suporta a maior parte da massa muscular enquanto o dedo mais pequeno impede que a avestruz perca o equilíbrio, actuando como um navegador, especialmente durante a caminhada lenta.

Figura 5: Perfil da
distribuição da carga no ‘pé’
esquerdo de uma avestruz,
registado com uma placa de
pressão. As áreas a vermelho
indicam muita carga; o
azul-escuro indica pouca
carga. Clique na imagem para
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Imagem cortesia de Nina
Schaller

A velocidades elevadas, a sola mole dos pés amortece o stress do impacto, enquanto a postura em ponta dos pés actua como uma mola que confere um efeito amortecedor adicional (setas vermelhas na Figura 4). Durante a marcha, as garras quase não contactam com o solo mas quando a ave corre exerce uma pressão de cerca de 40 kg/cm². As garras penetram no solo como um espigão, assegurando uma aderência segura a 70 km/h – velocidade máxima com gasto energético mínimo, ideal para corridas de resistência no solo das savanas Africanas (Figura 5).

Aplicações práticas

A minha investigação levou-nos mais longe no que respeita ao nosso entendimento sobre como a avestruz é capaz de correr tão depressa durante tanto tempo. A agora que somos capazes de compreender estas estratégias biomecânicas, aperfeiçoadas ao longo de 60 milhões de anos de evolução, poderemos tentar adaptá-las a tecnologias modernas, tais como a robótica bípede, sistemas de suspensão e engenharia de estabilização de articulações. Algumas das minhas descobertas serviram já de inspiração a quem desenvolve próteses humanas ‘inteligentes’ para adaptar características das pernas e pés das avestruzes, o que poderá permitir que amputados possam ter uma ampla gama de funções e capacidade de manobra.


Resources

Author(s)

Após concluir os seus estudos em Biologia na Universidade de Heidelberg, Alemanha, Nina Schaller foi voluntária no Zoológico de Frankfurt onde uma avestruz excepcionalmente amigável lhe despertou o interesse por este vertebrado terrestre único. Durante os últimos nove anos, Nina estudou a performance corredora sem paralelo da maior ave actual. Criou avestruzes e colaborou com universidades e institutos de investigação em Antuérpia, Bélgica; Viena, Áustria; Frankfurt e Munique, Alemanha; e Toronto, Canadá. O método interdisciplinar de Nina levou à descoberta de estratégias de conservação de energia que explicam como as avestruzes gerem a sua vida na pista rápida.

Review

A surpreendente, embora óbvia, afirmação de que “as aves e os humanos são os únicos verdadeiros bípedes” introduz o relato da investigação que Nina Schaller tem realizado durante quase uma década. Ela oferece-nos uma imagem de uma abordagem multidisciplinar a um fenómeno complexo – a notável velocidade e resistência da avestruz – investigando a biomecânica e a eficiência da performance da ave através da anatomia (dissecações) e da fisiologia (estudos funcionais). Adicionalmente, os recursos indicados oferecem ampla informação e materiais de ensino sobre a locomoção das avestruzes e de humanos.

Este artigo será um meio interessante e útil para endereçar tópicos sobre biologia (biomecânica – ossos, músculos, tendões e ligamentos; evolução – homologia e analogia) e tópicos sobre física (eficiência, forças, velocidade, corridas e movimentos) no ensino Básico e Secundário. Por exemplo, pode ser usado para abordar a biomecânica da caminhada e da corrida em diferentes espécies e os aspectos funcionais das próteses de membros inferiores (como as usadas pelo corredor Oscar Pistorius). Pode ainda servir como uma valiosa leitura para contextualizar uma visita a um museu de história natural ou um jardim zoológico ou a um laboratório de robótica.

Algumas questões de compreensão adequadas:

  1. A hipótese na investigação de Nina Schaller era de que o sistema locomotor das avestruzes:
    1. maximiza a produção de energia e os requisitos energéticos
    2. minimiza a produção de energia e maximiza os requisitos energéticos
    3. maximiza a produção de energia e minimiza os requisitos energéticos
    4. minimiza a produção de energia e os requisitos energéticos.
  2. As pernas das avestruzes têm
    1. musculatura localizada na parte superior do osso da coxa e tendões curtos
    2. musculatura localizada na parte superior do osso da coxa e tendões longos
    3. musculatura localizada na parte inferior do osso da coxa e tendões curtos
    4. musculatura localizada na parte inferior do osso da coxa e tendões longos.

Giulia Realdon, Itália

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