A importância do fracasso: entrevista com Paul Nurse Inspire article

Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Uma experiência falhada de Paul Nurse inspirou uma carreira vencedora de um prémio Nobel.

Sir Paul Nurse
Imagem gentilmente cedida
por Rosie Hallam

Quando Paul Nurse era estudante, na década de 1960, os cientistas sabiam que as células se dividem e fazem cópias de si mesmas. No entanto as questões-chave eram um mistério: que desencadeia a divisão celular? Como é controlada essa divisão? Como é iniciada a replicação do ADN? Fascinado por estes enigmas, Nurse dedicou grande parte da sua carreira ao esclarecimento dos mecanismos de regulação do ciclo celular, trabalho que lhe valeu um Prémio Nobel. No entanto as coisas poderiam ter sido muito diferentes.

“Eu tinha muito boas notas e em todas as universidades a que me candidatei tinha lugar garantido”, diz Nurse, que agora é director do Francis Crick Institute, em Londres, Reino Unido. “Mas a admissão estava dependente de aprovação num exame de Francês Elementar, e eu chumbei seis vezes – não por falta de esforço e empenho, mas sou completamente incompetente em línguas.”

Contra ventos e marés

Ainda em luta com o Francês, Nurse deixou a escola e esteve um tempo a trabalhar como técnico num laboratório da cervejeira Guinness. Todas as semanas fazia rapidamente o trabalho de modo a ter tempo para se dedicar aos projectos de investigação que o fascinavam. Mas, apesar de repetidas tentativas, não conseguiu passar no exame de Francês.
E um dia, um encontro ocasional com o professor de genética John Jinks fez disparar a carreira científica de Nurse. Jinks reconheceu o seu potencial e conseguiu-lhe admissão no curso de biologia da Universidade de Birmingham, Reino Unido. ” Houve ainda uma pedra no sapato: a universidade obrigou-me a estudar Francês no primeiro ano”, lembra Nurse.

Outros obstáculos se seguiram. ” Inicialmente eu estava interessado em ecologia, mas uma saída de campo para recolha de espécimes em águas geladas mostrou-me que o meu habitat era o laboratório, mais quente”, diz Nurse. Foi lá, sob orientação de um professor de zoologia excêntrico, Jack Cohen, que Nurse se envolveu num projecto de medição da taxa de respiração de ovos de peixe em divisão celular.

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por Jirsak / Shutterstock.com

“A divisão celular é a base de todo o crescimento e desenvolvimento – fiquei imediatamente fascinado por este tema”, lembra Nurse. Ao longo dos meses seguintes, transferiu cuidadosamente ovos do aquário universitário para uma câmara fechada. Depois mediu os níveis de oxigénio ambiente, observando meticulosamente os efeitos de diferentes inibidores. “Verifiquei que a taxa de respiração oscilava de quinze em quinze minutos, o que é mais ou menos o tempo necessário para que os ovos de peixe se dividam”, diz ele. “Curiosamente, este padrão mantinha-se independentemente do que eu mudava no sistema – parecia incrivelmente robusto.”

A uma semana do dia marcado para a apresentação do trabalho, um teste controlo aparentemente rotineiro deixou Nurse atordoado. “Eu fiz a experiência sem ovos na câmara e medi exactamente a mesma oscilação”, diz ele. “Repeti a experiência uma e outra vez, convencido de que havia um erro. Até que finalmente percebi que não estava a medir a taxa de respiração dos ovos, mas sim o efeito do termostato do equipamento. Foi um falhanço completo, do princípio ao fim”

Com a nota em jogo e apenas uma semana para apresentar o trabalho, Nurse estava metido num grande sarilho. “A única coisa de que me lembrei para salvar o diploma foi de uma apresentação teatral”, lembra. “Na minha apresentação, revivi todo o estudo, do início, emocionante, ao fim, desastroso, e, de alguma forma, a audiência ficou impressionada. Uma mensagem-chave foi: faça controlos logo no início, assim que o estudo se torne interessante.”

Durante a fase M do ciclo
celular os cromossomas
separam-se e formam-se
duas células-filhas.

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por Jan Ellenber

Perseverança

“Em tempos difíceis, de dúvida ou de angústia, eu admiti carreiras alternativas”, diz ele, “mas sou um experimentalista nato e tive a sorte de ter colegas que me apoiaram muito na minha carreira “. Nurse concluiu com sucesso a licenciatura e o doutoramento e, já como pos-doc, viu no ciclo celular um modo de aprofundar os conhecimentos sobre o que mais o fascinava: a natureza da vida. “A célula é a coisa mais simples que demonstra a existência de vida”, diz ele. “A chave para compreender isto é saber como a célula gere a informação, criando ordem no espaço e no tempo”

Inspirado em estudos genéticos de elucidação do ciclo celular de leveduras, Nurse retomou o organismo com o qual tinha trabalhado no laboratório da Guinness: a levedura de cerveja Schizosaccharomyces pombe “Eu queria um organismo modelo simples e eficaz”, lembra. No seu estudo induziu mutações aleatórias ao longo do genoma da levedura.

Nurse percebeu que a chave para identificar os genes que regulam a divisão celular da levedura era estudar células que se dividem de forma particularmente lenta (criando células maiores) ou particularmente rápida (criando células mais pequenas). A segunda categoria foi descoberta por acaso quando Nurse observou algumas células invulgarmente pequenas que se dividiram muito rapidamente antes de poderem crescer. Ele identificou uma mutação num gene chamado cdc2 que parecia desempenhar um papel importante na iniciação de fases-chave do ciclo celular. “Às vezes a natureza fornece as melhores pistas”, diz ele.

Depois de descobrir um gene semelhante a cdc2 em outro tipo de levedura, Nurse perguntou-se se o gene existiria em todos os organismos – uma questão que começou a esclarecer em 1984 no laboratório do Imperial Cancer Research Fund,no Reino Unido. “Muitos viam com cepticismo um investigador de leveduras num centro de investigação sobre cancro”, diz ele.
A sua equipa usou uma biblioteca de genes humanos e introduziu o gene cdc2 humano no genoma de levedura desprovido de cdc2.O resultado foi entusiasmante: as células dividiram-se normalmente.Esta observação levou Nurse a uma conclusão surpreendente: o mecanismo fundamental que regula o ciclo celular é o mesmo em todas as espécies; foi altamente conservado ao longo de 1-1,5 mil milhões de anos de evolução.

Em parceria com o amigo e colega Tim Hunt, o trabalho levou à descoberta de enzimas denominadas cinases dependentes de ciclina, sinalizadores celulares, e de outros aspectos da natureza do ciclo celular, tudo crucial para a compreensão da saúde e da doença.Em 2001, Nurse, Hunt e Leland H. Hartwell receberam o Prémio Nobel de Fisiologia ou Medicina pelas suas descobertas de reguladores-chave do ciclo celulaw1.

“Para incentivar futuras gerações de cientistas, é importante dar-lhes a conhecer as verdadeiras histórias por trás dos avanços da ciência, incluindo os êxitos e os fracassos que são parte integrante do nosso trabalho “, acrescenta Nurse. “Há ainda muito por esclarecer sobre o modo como as células se organizam no espaço e no tempo, mas creio que as metodologias que desenvolvemos nos últimos cinquenta anos vão permitir-nos fazer grandes progressos nas próximas décadas. E, como aprendi com as minhas experiências infrutíferas sobre respiração de ovos de peixe, os fracassos dão também uma ajuda preciosa”

Nurse, Hunt e Hartwell usaram métodos de genética e de biologia molecular para esclarecer os mecanismos que controlam as diferentes fases do ciclo celular. G1 (fase G1 de crescimento): a célula cresce; S (fase de síntese de ADN): duplicação dos cromossomas; G2 (fase G2 de crescimento): a célula cresce mais e prepara-se para a divisão; M (mitose): há divisão dos cromossomas e formação de duas células-filhas.
Imagem gentilmente cedida por Nicola Graf

Agradecimentos

A versão original deste artigo foi publicada na EMBLetc, a revista do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL, European Molecular Biology Laboratory)w2.


Web References

  • w1 – Em 2001 o prémio  Nobel de Fisiologia ou Medicina foi atribuído a Leland H. Hartwell, Tim Hunt e Sir Paul M. Nurse. Para saber mais sobre Sir Paul Nurse, visite o Nobel Prize website.

  • w2 – EMBL ié uma das principais instituições dedicadas à investigação fundamental em ciências da vida. O EMBL é membro do EIROforumw3, editor de Science in School.

  • w3 – EIROforum é uma colaboração entre oito das maiores organizações de investigação científica intergovernamentais da Europa, que combinam os seus recursos, instalações e experiência para apoiar a ciência europeia. Como parte das suas actividades de educação e divulgação, EIROforum publica Science in School.

Resources

Author(s)

Adam Gristwood é jornalista e editor no Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL)w2. Escreve principalmente sobre ciências da vida, mas também relatou histórias do Deserto de Atacama, do grande acelerador de partículas (sigla inglesa, LHC) do CERN, e de um helicóptero.

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