O proteoma da levedura: reequipando a fábrica Understand article

Traduzido por Artur Melo. Russ Hodge do European Molecular Biology Laboratory em Heidelberg, Alemanha, relata o primeiro exame completo das “máquinas moleculares” das leveduras.

Gitte Neubauer, Anne-Claude
Gavin, Rob Russell e Peer
Bork

Imagem cedida por EMBL
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Em 1901, Franz Hofmeister comparou a célula a uma fábrica, capaz de receber matérias-primas e convertê-las em produtos necessários à vida; chegou mesmo a sugerir que as subunidades das células, que foram identificadas com o microscópio, podem ser responsáveis por tipos específicos de reacções.

A analogia manteve-se ao longo de um século de descobertas acerca das funções das moléculas. As proteínas foram descritas como “moléculas operárias” e os processos químicos como “linhas de montagem”. No entanto, ao contrário de uma fábrica de automóveis, onde as máquinas se mantêm aparafusadas ao pavimento e apenas são substituídas quando aparecem novos modelos, a célula reequipa-se continuamente a ela própria. As proteínas são simultaneamente operários e componentes de robots complicados que são continuamente montados e substituidos; muitas vezes, a mesma molécula pode aparecer em várias máquinas.

A amplitude total desta organização flexível apenas se tornou evidente através de um estudo recente publicado na revista Nature (Gavin et al., 2006). Até então, os cientistas tinham uma visão muito limitada das máquinas e dos seus componentes. “A situação era como chegar a uma fábrica e encontrar os componentes de cada máquina espalhados pelo chão,” diz a investigadora Anne-Claude Gavin, cientista no European Molecular Biology Laboratory (EMBL) em Heidelberg, Alemanha. “Sabíamos o que algumas máquinas fazem, e alguma coisa sobre o modo como operam, mas não havia realmente uma visão do contexto global.”

Patrick Aloy e Rob Russell
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Os cientistas já começaram a descobrir a montagem das máquinas das leveduras, baseados em cada uma das peças, usando um método chamado “two-hybrid screen”. Este método compara cada proteína da levedura com cada uma das outras, assemelhando-se a desmontar tudo numa fábrica de automóveis e tentar depois ajustar todas as peças, uma a uma. O método gerou uma grande quantidade de informação útil mas também muitas pistas falsas.

Pode ser fisicamente possível inserir uma barra de transmissão num tubo gasto, o que não significa que acontece sempre num automóvel em funcionamento. Com 6500 elementos para controlar – aproximadamente o número de proteínas codificadas no genoma da levedura – o método “um-a-um” permite uma visão muito limitada de cada uma das máquinas, esquecendo a totalidade da fábrica.

AUma alternativa seria começar com máquinas completas e, em seguida, analisar as moléculas que as constituem. Mas os métodos de extracção de proteínas de células normalmente fragmentam os complexos. No entanto, há alguns anos atrás, o laboratório de Bertrand Séraphin no EMBL inventou um processo chamado purificação por afinidade em série ou TAP (tandem affinity purification), um método que recolhe moléculas isoladas de células, juntamente com quaisquer máquinas que a elas estejam ligadas, intactas. Os componentes dos complexos podem depois ser analisados por espectrometria de massa – um método que fragmenta proteínas e “pesa” as peças. Como cada proteína tem uma composição específica, a espectrometria de massa fornece aos cientistas valores que podem ser comparados, por computador, ao perfil de determinada molécula. Trabalhando em colaboração com o EMBL, a empresa Cellzome decidiu levar a cabo a descoberta da totalidade do genoma da levedura, através destes métodos. Milhares de experiências depois, obtiveram a primeira imagem completa dos genes de uma célula eucariótica, com a pesquisa de máquinas moleculares.

O estudo revelou 491 complexos, 257 dos quais totalmente novos. Os restantes eram conhecidos de outras investigações, mas agora, descobriu-se que virtualmente todos eles têm novos componentes. Será a lista exaustiva? “Estimamos que haverá cerca de 300 mais,” diz Anne-Claude. “Alguns complexos podem ser visíveis apenas quando determinadas condições são utilizadas para cultivar a levedura, e outros podem não conseguir ser descobertos com este método de extracção.” Por exemplo, foi particularmente difícil purificar complexos ligados à membrana celular. Os investigadores adaptaram o método para o conseguirem, e encontraram 74 novos complexos que envolvem proteínas membranares, mas Anne-Claude está convencida que existem muitos mais.

Uma lista de componentes é apenas o início: os cientistas também querem saber onde se localizam os complexos na célula, o que fazem e como funcionam. Por vezes estas questões podem ser solucionadas apenas a partir dos componentes. Um complexo com três proteínas que reaja ao aquecimento desempenha, sem dúvida, um papel na adaptação do organismo a modificações de temperatura. Outros complexos podem estar ligados a processos tais como ligação ao DNA ou à ajuda no aperfeiçoamento de outras moléculas.

Alguns dos módulos
dinâmicos e complexos
descobertos no projecto
proteómico da levedura.
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A informação também forneceu novas perspectivas sobre o modo como a célula controla a incrivelmente complicada tarefa de construir os complexos, e isto revela aspectos importantes acerca da biologia da levedura e de outros organismos. “Será que a célula realiza a pré-montagem das máquinas, que ficam sempre disponíveis, ou serão elas construídas a partir de esboços quando alguma coisa acontece?” diz Anne-Claude. “Por outras palavras, como são as máquinas – e a fábrica no seu todo – realmente controladas? Nós não sabíamos, mas agora já podemos dizer bastante sobre este assunto. Para o fazer, precisámos descobrir novas formas de interpretar os resultados obtidos.”

Os mapas de estradas incluem normalmente uma tabela com as distâncias a percorrer entre cidades. Por exemplo, 1150 quilómetros separam Roma e Heidelberg, de Heidelberg a Cambridge são 2045 quilómetros (incluindo uma passagem de barco). Usando uma tabela destas e um pouco mais de informação, podíamos agrupar as cidades em regiões, estados e países. Para compreender a actividade interna dos complexos proteicos, diz Patrick Aloy, os cientistas gostariam de ter um mapa de moléculas desse género.

Patrick foi um elemento do grupo de Rob Russel no EMBL, onde são utilizadas técnicas computacionais para compreender a actividade interna de complexos proteicos. A combinação de dados da morfologia e da função das proteínas, com dados sobre a forma como se ligam a outras moléculas, permitiu aos cientistas começar a desenhar “diagramas técnicos” de máquinas. Mas o conhecimento ainda em esboço limitou o alcance desses esforços.

“Imagine substituir um quadro de distâncias por uma tabela que o informa apenas se sim ou não – pode ir daqui para ali?” diz Patrick. “Com esta informação não conseguirá desenhar um mapa com muito significado, mas este tipo de estudo é tudo o que temos neste momento. Bem, agora já produzimos uma coisa semelhante ao quadro de distâncias – cada par de proteínas tem um número que indica a probabilidade de serem encontradas juntas em extractos purificados.”

Esta informação foi agora convertida num mapa do piso da fábrica, incluindo máquinas completas e incompletas, elementos pré-fabricados e módulos de encaixe. “O que se verifica é que a maior parte dos complexos tem um conjunto nuclear de componentes, os quais aparecem sempre juntos, e outros componentes que são usados ou não,” diz Rob. “Podemos considerar os núcleos como cruciais, elementos pré-fabricados de máquinas que se mantêm, com módulos temporários que são adicionados quando se torna necessário.”

A função desses módulos, diz Anne-Claude, pode ser a alteração da actividade do núcleo da máquina, ligá-la a outras coisas que ocorrem na fábrica, activá-la ou desactivá-la. “Isto tem vários efeitos importantes. Em primeiro lugar, fornece à célula um método de executar uma elevada quantidade de tarefas com um número reduzido de máquinas simples. O que lhe dá alguma flexibilidade. Em segundo lugar, significa que em caso de emergência, a célula não precisa de produzir todas as máquinas necessárias desde o início. Apenas é necessário produzir alguns elementos essenciais. O outro lado do problema é que pode ser relativamente simples para a célula controlar uma máquina sofisticada, apenas pelo fornecimento ou bloqueamento de um elemento crítico.”

Existe uma ligação importante à evolução porque, em geral, alguns tipos de máquinas e respectivos componentes básicos se têm mantido ao longo de milhares ou milhões de anos, à medida que novas espécies aparecem. O grupo de Peer Bork no EMBL tem ajudado a investigação deste assunto.

“Se compararmos o que acontece nas leveduras e nas nossas próprias células, descobrimos muitas máquinas semelhantes, que usam os mesmos componentes básicos para fazer as mesmas coisas, “diz Peer. “Os complexos reflectem como decorre a evolução – como variações de um tema. Não encontramos todas as espécies a inventar uma nova forma de fazer as coisas; ao contrário, elas vão refinando o que pretendem pela adição de módulos especializados, ou modificando ligeiramente a forma como o conjunto é regulado.”

O estudo revela bastante sobre cada uma das máquinas e como trabalham em conjunto. No entanto, muito está ainda para ser descoberto acerca da sua acção nas células vivas – onde se localizam muitas delas, e quantas cópias de cada máquina estão em actividade em cada momento. A informação estrutural sobre os complexos está a ajudar a responder a algumas destas questões, porque fornece aos cientistas uma visão sobre a morfologia geral de um complexo. Isto quer dizer que pode ser observada ao microscópio.

“Mesmo com microscopia electrónica, os complexos proteicos são pontos difusos que são difíceis ou impossíveis de identificar,” diz Anne-Claude. “Mas com uma boa informação da morfologia talvez consigamos atribuir nomes a algumas das formas.”

A saúde reflecte a acção da totalidade da célula no contexto do organismo. O nível das máquinas moleculares é crucial na sua regulação e mantendo as coisas em equilíbrio. O que os cientistas conseguiram está a modificar o que pensamos acerca de, não apenas como cada uma das máquinas funciona e é regulada, mas como funcionam em conjunto. Isto será obviamente crucial à medida que os cientistas tentam conduzir organismos de um estado de doença para um estado saudável.


References

  • Gavin AC et al. (2006) Proteome survey reveals modularity of the yeast cell machinery. Nature 440: 631-636. doi:10.1038/nature04532
    • Descarregue o artigo gratuitamente aqui, ou subscreva a revista Nature.
  • Este artigo encontra-se no relatório anual do European Molecular Biology Laboratory, uma colecção de artigos em tópicos da ciência mais corrente. O resto do relatório está disponível neste endereço aqui.

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Review

No campo das ciências da vida, a palavra proteoma tornou-se muito popular, tal como outras palavras terminadas em “-oma”, mas é raro encontrá-la explicada de forma tão clara como neste artigo.

Começando com a metáfora da célula como uma fábrica, Russ Hodge conduz o leitor para a sua complexa maquinaria proteica utilizando um estilo directo e cativante, com exemplos do quotidiano.

Outro aspecto atractivo do artigo é a descrição dos métodos e estratégias utilizados pelos cientistas para investigar a estrutura, função e evolução destes objectos incrivelmente pequenos que são os complexos proteicos da célula.

Recomendo este artigo aos professores e estudantes de escolas secundárias que tenham no currículo disciplinas de bioquímica e/ou biologia celular. De facto, pode ser usado para ensino em sala de aula ou para investigação autónoma do assunto pelos alunos.

Finalmente, gostava de referir que este artigo, apesar do estilo simples e amigável, oferece uma visão esclarecedora e sintética de um assunto bastante complexo: com o sabor excitante da aventura da descoberta, constitui um excelente exemplo de popularização da ciência de alto nível, o que é especialmente necessário hoje em dia para encorajar vocações científicas.

Giulia Realdon, Itália

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