Sono e aprendizagem Understand article

Traduzido por Ana Luísa Carvalho. Quando dormimos, será que estamos apenas passivamente a recuperar de um dia cansativo, ou será mais do que isso? Angelika Börsch-Haubold pondera as implicações de alguma investigação intrigante – será que a sua avó tinha razão? Testa tu mesmo as…

A minha avó costumava dizer que uma boa noite de sono era essencial para a aprendizagem. Ela insistia mesmo que o sono antes da meia-noite era o melhor. Normalmente, as crianças não se importam de ir para a cama quando têm sono, mas os adolescentes recusam-no como parte da sua emancipação sobre a influência parental. E a nossa sociedade parece contribuir para isso: hoje em dia, dormimos menos 20% do que os nossos antepassados, porque trabalhamos mais horas e procuramos actividades sociais nocturnas (Hargreaves, 2000).

Todos sabemos que uma noite de sono tardia ou a perda regular de pequenos períodos de sono dificultam a actividade cognitiva. Estima-se que o cansaço seja um factor importante em um terço dos acidentes de viação e que seja a primeira causa de acidentes fatais na faixa etária dos 18 aos 25 anos de idade. Mas dormir pouco não coloca apenas a própria vida em risco. Um inquérito anónimo em São Francisco revelou que mais de 40% de funcionários hospitalares admitiram que, por decisões erradas associadas a cansaço, causaram a morte a pelo menos um paciente.

Um indicador simples de privação de sono é a tendência para adormecer durante o dia. Isto acontece aos alunos durante as aulas, aos estudantes sobre os livros de estudo, às pessoas que viajam ou às pessoas idosas em frente ao televisor. A privação de sono é um fenómeno comum e, para além das suas consequências potencialmente fatais, afecta-nos na nossa capacidade de memorizar e, consequentemente, na capacidade de aprender.

A consolidação da memória e a apreensão súbita

Nos últimos anos, os cientistas descobriram que o sono é mais do que uma simples regeneração do nosso sistema nervoso. Durante o sono, dá-se a activação do processo de aprendizagem (Huber et al., 2004), essencial para a formação da memória a longo prazo. A memória inicial, que se forma assim que aprendemos uma nova tarefa, é susceptível a interferências. Ao fim de um tempo específico, inicia-se um processo automático designado de consolidação da memória, que estabiliza essa memória. A consolidação da memória prossegue durante o sono, mas levando ao efeito adicional de aumento da memória. Como consequência, o nosso cérebro funciona melhor após uma sesta e, ainda melhor, após uma noite de sono (Stickgold, 2005). Além disso, se nos encontramos empenhados na procura de uma solução para um problema complicado, enquanto dormimos o nosso cérebro continua a trabalhar na procura dessa solução. Como resultado, podemos sentir uma súbita compreensão de um fenómeno, uma apreensão súbita, às vezes induzida por um sonho. Mais adiante, serão descritas duas experiências que avaliam o efeito do sono sobre a consolidação da memória e sobre a apreensão súbita.

O que acontece ao nosso cérebro enquanto dormimos?

O hipotálamo, como orgão regulador central do sistema nervoso autónomo, controla os ritmos circadianos (o relógio biológico) da nossa temperatura corporal, da libertação de hormonas, do apetite e do sono. Contém um interruptor neuronal que regula os “nervos do despertar” e os “nervos do sono”. Uma transição súbita para o modo de sono (adormecer) significa que o sistema nervoso induz uma inibição dos nervos do despertar. O interruptor é estabilizado por um terceiro grupo de neurónios, caso contrário, acordaríamos frequentemente durante a noite (Saper et al., 2005). Uma forma pictórica de compreender o mecanismo neuronal do sono, é imaginar três crianças num balancé. Duas delas, sentam-se cada uma num dos lados da trave, balançando para cima e para baixo – o interruptor. A terceira criança senta-se em cima do eixo. Quando muda o seu peso para um dos lados da trave, pára o movimento – o estabilizador.

Este sistema dinâmico gera as diferentes fases de sono, já conhecidas: o sono de movimento rápido dos olhos, sono REM (“rapid eye-movement”) durante o qual ocorrem os sonhos, e o sono não-REM, com as fases de sono leve I e II e de sono profundo III e IV. Uma noite de sono é caracterizada por ciclos de 90 minutos das fases de sono profundo e de sono leve. Um período inicial longo das fases de sono III e IV é seguido por um período curto de sono REM e pelas fases I e II. Ao longo da noite, as fases de sono profundo tornam-se mais curtas e as fases de sonho tornam-se mais longas.

Parece haver dois lados na função fisiológica do sono. Primeiro, o sono não-REM é um período pouco exigente em termos metabólicos, pelo que os níveis energéticos de adenosina trifosfato (ATP), gastos enquanto estamos despertos, são repostos. O produto da degradação do ATP, adenosina, actua como agente fisiológico do sono, ao activar directamente os neurónios promotores do sono. Segundo, o sono é fundamental para a flexibilidade neuronal. Durante o sono, enquanto algumas ligações acidentais entre neurónios são eliminadas, outras ligações significativas são reforçadas. Todas as diferentes fases do sono possuem implicações na aprendizagem dependente do sono.

A consolidação da memória dependente do sono

O efeito do sono na aprendizagem é mais facilmente quantificado se estudarmos a aprendizagem não-consciente. Isto pode ser feito por intermédio de experiências que testam as capacidades motoras, tais como usar um teclado ou traçar uma linha exibida num monitor de computador, ou testando capacidades perceptivas, tais como diferenciar entre barras diagonais e horizontais, em planos diferentes.

Na experiência de digitar, os sujeitos digitam repetidamente num teclado de computador uma sequência numérica, por exemplo 4-1-3-2-4, o mais rapidamente possível (ver texto em caixa). A capacidade de digitar aumenta nos primeiros cinco minutos de prática, após os quais os sujeitos atingem uma assímptota de cerca de 60% de capacidade de melhoramento, durante 12 tentativas de 30 segundos cada (Stickgold, 2005). Repetir a experiência 4 a 12 horas mais tarde e no mesmo dia, não acrescenta qualquer melhoria à capacidade dos sujeitos. Após uma noite de sono, a velocidade e a precisão de digitar são aumentadas de cerca de 20% em média. Após duas noites, regista-se um melhoramento de mais 26%. Estes resultados indicam claramente um processo de consolidação da memória, por intermédio do sono.

Curiosamente, o sono só ajuda se não aprendermos demasiado de uma só vez e usando o mesmo tipo de memória. Se, durante a experiência de digitar, introduzirmos uma segunda sequência de aprendizagem, imediatamente após a primeira sessão de treino, o sono induz  melhoramentos apenas na capacidade de digitar a segunda sequência (Walker et al., 2003). Diferentes tempos de treino demonstram que a consolidação da memória atinge uma primeira fase de estabilização no período de 10 minutos a 6 horas após a aprendizagem, e só após este período é que se torna resistente a interferências por parte de outras memórias. Contudo, pequenos períodos de treino (como na situação de repetição da experiência) retornam a memória a um estado lábil, novamente vulnerável a interferência por parte de um padrão motor competidor, em busca de consolidação.

Não há forte evidência científica de que exista uma consolidação da memória, dependente do sono, para eventos (o que ocorreu ontem) e factos (o nome de um colega de trabalho). Contudo, nos sujeitos a que se pede que memorizem sílabas desprovidas de sentido, ou para encontrarem associações de palavras, o “deitar cedo” (rico em sono profundo) favorece a estabilização desta “memória declarativa” (Stickgold, 2005).

O sono e a apreensão súbita

A apreensão súbita é uma forma de aprendizagem cognitiva complexa. James Watson, um dos descobridores da forma de hélice dupla do ADN, tornou-se um exemplo de como o sono pode induzir a apreensão súbita. Em 1953, quando se dedicava ao problema do emparelhamento das bases, questão essencial para a elucidação da estrutura do ADN, James Watson convenceu-se que havia resolvido esse problema, propondo o emparelhamento de igual-para-igual das quatro bases adenina, guanina, citosina e timina, por intermédio de ligações de hidrogénio. A sua tese foi rapidamente contestada pelos seus colegas cristalógrafos por duas razões. A primeira, as bases guanina e timina estariam provavelmente na configuração ceto- (os livros de texto mostravam apenas a configuração enol-); segunda razão, a regra de Chargaff diz que a proporção de adenina no ADN iguala a de timina, enquanto que a de guanina iguala a de citosina.

Mesmo confrontado com estas evidências, Watson não descobriu a solução nesse mesmo dia, embora se tivesse dedicado a cortar, em cartão, modelos das quatro bases. Contudo, na manhã seguinte ele escreve: “Subitamente, apercebi-me que um par adenina-timina, mantido por ligações de hidrogénio, possuía uma forma idêntica ao par guanina-citosina […] Todas as ligações de hidrogénio pareciam formar-se naturalmente […] a regra de Chargaff surgia agora como uma consequência da estrutura do ADN em hélice dupla” (Watson, 1980). Nascia assim a hélice dupla de Watson e Crick.

Wagner e colegas elaboraram um teste com o objectivo de determinar, com exactidão, o momento de ocorrência de apreensão súbita, no processo de aprendizagem (Caixa 2; Wagner et al., 2004). Os sujeitos usam um algoritmo padrão (composto de duas regras simples) para reduzirem uma sequência de oito dígitos a uma solução final. Eles não sabem que existe um atalho simples. A percentagem de sujeitos que, ao repetir o teste, descobrem este atalho ou regra escondida, é 22% no grupo que foi mantido acordado, contra 60% no grupo que dormiu. Sendo assim, descobrir uma regra complexa, uma das actividades cognitivas humanas mais avançadas, torna-se muito mais fácil após uma noite de sono, mesmo que o sujeito a ser testado ignore que existia uma regra a ser descoberta.

Conclusão

A mais recente investigação sobre sono e aprendizagem conferiu rigor científico aos conselhos da minha avó. Esta informação combinada com os indicadores óbvios de que a privação de sono é uma realidade na nossa sociedade, leva-nos a repensar os nossos hábitos de sono. O conhecimento sobre as necessidades de sono do nosso cérebro ajudar-nos-á a aprender, trabalhar e viver em harmonia com o nosso sistema neurofisiológico, por forma a aproveitarmos uma vida inteira de aprendizagem eficaz. Sendo assim, durmam sobre o assunto.

Protocolo experimental para a tarefa de digitar

Para a experiência de digitar, é necessário obter o ficheiro de formato Excel, FingerTap.xlsw1, previamente programado. Antes de usar a folha de cálculo, faça uma cópia e guarde-o com o nome do estudante a que se destina a tarefa de aprendizagem.

Realizando a tarefa de digitar

Dois estudantes terão que trabalhar em conjunto. Um deles, necessariamente dextro, coloca quatro dedos da sua mão esquerda nas teclas 1 a 4 do teclado do computador, ver figura. Começando na coluna “run 1”, o sujeito terá que digitar repetidamente a sequência-alvo de cinco dígitos que se encontra no início do ficheiro. Terá que o fazer rapidamente e com a maior exactidão possível. A sequência digitada não aparece nas células. Após cada sequência, o estudante pressiona a tecla “enter” com a sua mão direita, por forma a mover o cursor para célula abaixo.

O parceiro mede o tempo. Cada  etapa é realizada durante 30 segundos, seguidos de um igual período de descanso; a fase de treino consiste de 12 etapas (uma em cada coluna “train”, marcadas de “run 1” a “run 12”). A repetição do teste contempla 6 etapas equivalentes (colunas “retest” de “run 1” a “run 6”) e é realizada 6 a 8 horas mais tarde, no mesmo dia (grupo privado do sono) ou, no dia seguinte, após uma noite de sono completo (grupo de sono).

A primeira secção da folha de cálculo Excel está programada para contar todas as entradas correctas, apresentando o resultado na linha “score” (linha 56). A análise automática dos dados é feita na segunda secção, mostrando um gráfico dos resultados para cada etapa e comparando os resultados da fase de treino com os da fase de teste. Para quantificar a diferença entre o grupo que dormiu e o grupo privado de sono, compara-se a média de sequências correctas na fase de treino com a média da fase de teste; os valores médios para cada estudante são calculados automaticamente na folha de cálculo.

Exemplos de folhas de cálculo completas podem ser obtidos a partir do websitew1 da Science in School.

 

Protocolo experimental para a tarefa de redução à solução mais simples

Nesta experiência, os estudantes aprendem a usar um algoritmo padrão para reduzirem uma dada sequência de oito dígitos (composta pelos números 1, 4 e 9) a uma solução final (ver figura). Têm que aplicar duas regras simples:

A tarefa de redução à solução
mais simples
  1. a “regra da igualdade” impõe que dois dígitos idênticos dão origem a esse mesmo dígito (ex: os dígitos 1 e 1 resultam em 1)
  2. a “regra da diferença” diz-nos que o resultado de dois dígitos não idênticos é o terceiro dígito (ex: 1 e 4 resultam no dígito 9).

Após a primeira resposta, compara-se o resultado anterior com o dígito seguinte (i.e. entre os dígitos nos círculos; a seta aponta o resultado correcto). A sétima resposta indica a solução final; o tempo necessário para resolver a sequência deverá ser registado.

O que os estudantes não sabem é que existe uma “regra escondida”: as sequências são geradas de forma a que a segunda resposta coincida com a resposta final. A compreensão desta regra escondida reduz significativamente o tempo necessário para chegar à resposta final.

Antes de iniciarem a experiência, os estudantes praticam, sem cometerem erros, com dez sequências (que não obedecem à regra escondida) para garantir que compreenderam as regras da “igualdade” e da “diferença”. Um documento de formato Word (NumberRed.doc), contendo sequências de prática e de teste, pode ser obtido a partir da internetw1.

A experiência consiste de uma fase inicial de treino (três blocos de tarefas de 30 sequências cada), um período de 8 horas de sono ou de privação de sono e repetição das tarefas (dez blocos de tarefas). No final da experiência, calcula-se a percentagem de sujeitos que reconheceram a regra escondida e compara-se o resultado dos grupos de sono e de privação de sono. Na publicação original, os sujeitos que reconheceram a regra escondida reduziram os seus tempos de resolução do problema, abruptamente, de 8,7 para 2,4 segundos.

Quando preparar a experiência, certifique-se que os estudantes não suspeitam da existência de um “atalho” para a solução correcta. Se um estudante descobrir a regra escondida durante a fase inicial de treino, os seus resultados deverão ser excluídos da análise final.

Acknowledgements

Com agradecimentos a Robert Stickgold (Harvard Medical School, MA, EUA) e Ullrich Wagner (Universität Lübeck, Alemanha), que conduziram a investigação aqui descrita, pelos seus comentários às actividades planeadas.


References

Web References

w1 – Todos os documentos necessários para os exercícios propostos podem ser obtidos no endereço electrónico:

Review

Este é um artigo que irá captar o interesse de alunos e professores. Descreve uma investigação científica complexa, em termos simples. O artigo e as experiências propostas são apropriados para integrarem os novos cursos GCSE (para idades compreendidas entre os 14 e os 16 anos) em Inglaterra, mas também podem ser realizados por estudantes de outras idades e de outros países.

Clara Seery, Reino Unido

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