Manipular o microbioma intestinal: o potencial subestimado das fezes Understand article
Tradução de Isabel Queiroz Macedo. Este procedimento médico pode parecer repugnante, mas não deve ser subestimado.
Fezes, excrementos, cocó, o que lhe queiramos chamar, a ideia de transferir isso de alguém para o nosso organismo parece repugnante. Mas para alguém que sofre de uma infecção por Clostridium difficile, um distúrbio intestinal potencialmente fatal, um transplante fecal pode ser a salvação. Por conseguinte vale a pena dar atenção a este tratamento médico incomum. As fezes contêm um componente crucial, bactérias benéficas, e a taxa de sucesso do tratamento de infecções por C. difficile com transplante fecal é superior a 90%. Além disso, para os cientistas do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (European Molecular Biology Laboratoryw1 (EMBL), a escolha cuidadosa de “dador compatível” poderá tornar os transplantes fecais mais eficazes e de uso mais generalizado
Bactérias e o microbioma intestinal
Quando tomamos um antibiótico esperamos que trate a infecção, não que cause uma nova doença. No entanto, além de matar as bactérias-alvo, os antibióticos (particularmente os antibióticos de largo espectro) destroem bactérias benéficas, levando a um desequilíbrio na comunidade complexa de microrganismos do nosso intestino, a microbiota intestinal.
C. difficile está presente no solo, na água e no ar, e vive inofensivamente no intestino de um em cada 30 adultos. Mas quando o equilíbrio normal da microbiota intestinal é perturbado e o número de bactérias benéficas diminui muito, C. difficile pode reproduzir-se rapidamente.
À medida que se multiplica e cresce no intestino, C. difficile produz toxinas que causam diarreia. E quando é excretada pode facilmente infectar outras pessoas. Isso faz que C. difficile seja um grande problema nos hospitais e uma infecção muito associada aos cuidados de saúde. Outros sintomas comuns incluem dor abdominal e febre; em casos graves, C. difficile pode causar desidratação, inflamação do intestino e até mesmo perfuração do cólon.
Para a maioria dos doentes, a infecção pode ser tratada com antibióticos específicos para a bactéria C. difficile. Mas em cerca de 20% dos casos os sintomas voltam, exigindo tratamento adicional. Nestes casos, o tratamento recorrente de C. difficile torna-se cada vez mais difícil, à medida que aparecem novas estirpes resistentes aos antibióticos. Uma solução para os doentes infectados pela “superbactéria” é o transplante de microbiota fecal.
Transplante de fezes
O processo de triagem de dadores de fezes é muito rigoroso: por exemplo, apenas 3% dos dadores voluntários para o banco de fezes OpenBiome são aceitesw2. Um transplante fecal pode transmitir doenças infecciosas, e além disso, com evidência crescente de que há relação entre o microbioma e obesidade, diabetes ou alergias, estes problemas poderão ser transferidos do dador para o doente. Uma mulher que foi curada de uma infecção por C. difficile com transplante fecal de um dador com excesso de peso sofreu um efeito colateral surpreendente: ganhou peso muito rapidamente (Alang & Kelly, 2015). Embora o transplante possa não ter sido a única causa, o caso levanta questões sobre o papel das bactérias intestinais no metabolismo e na saúde.
As amostras de fezes seleccionadas são liquefeitas e administradas com um colonoscópio. A comunidade de microrganismos do dador saudável, juntamente com todos os seus genes e funções metabólicas, pode então começar a redefinir o equilíbrio do microbioma do doente que a recebeu.
Embora a taxa de sucesso de cura de infecções por C. difficile com transplante fecal seja superior a 90%, a sua prática é ainda rara, provavelmente devido à nossa aversão a este procedimento não convencional. As fezes, tal como o sangue ou o material do vómito, podem conter organismos patogénicos, por isso não é de admirar que os evitemos e que nos repugne ingeri-los.
A generalização do transplante fecal é também dificultada por regras muito rigorosas e pelo facto de ser um tratamento mais invasivo do que os antibióticos.
Um comprimido personalizado
Para ficar mais apelativo, o transplante fecal está a tornar-se menos invasivo. Os doentes podem engolir algo esteticamente mais agradável: um comprimido, na forma de cápsula. Um estudo recente liderado por cientistas do EMBL, com colaboradores da Universidade de Wageningen e do Academic Medical Centre, ambos na Holanda, e da Universidade de Helsínquia, na Finlândia, sublinha a necessidade de uma abordagem personalizada (Li et al., 2016).
Em vez de identificar as espécies de bactérias no intestino do doente, a chave é ir mais além e ver que estirpes de cada espécie estão presentes. O estudo revelou que novas estirpes de bactérias do dador colonizam mais facilmente o intestino do doente se este já tiver essa espécie. Simone Li, que realizou o trabalho no EMBL, diz que o objectivo é prescrever um “cocktail” bacteriano personalizado em vez de um comprimido universal. Combinar cuidadosamente dador e receptor pode aumentar a eficácia dos transplantes fecais.
A aplicação de transplantes fecais não fica por aqui. Os cientistas estão a investigar a utilização desta terapia no tratamento de outros problemas comuns relacionados com um microbioma desequilibrado, como alergias, obesidade e diabetes tipo 2 (Bull & Plummer, 2014). E, quem sabe? Talvez no futuro possamos armazenar fezes saudáveis para uso posterior e engolir pílulas de matéria fecal congelada do nosso banco de fezes pessoal.
References
-
Alang N, Kelly CR (2015) Weight gain after fecal microbiota transplantation. Open Forum Infectious Diseases 2(1): ofv004.
-
Bull MJ, Plummer NT (2014) Part 1: The human gut microbiome in health and disease. Integrated Medicine 13(6): 17–22
-
Li S et al. (2016) Durable coexistence of donor and recipient strains after fecal microbiota transplantation. Science 352(6285): 586–589.
Web References
-
w1 – EMBL com sede em Heidelberg, Alemanha, é o principal laboratório europeu de investigação fundamental em biologia molecular.
-
w2 – OpenBiome é uma organização sem fins lucrativos dedicada a melhorar o acesso seguro a transplantes fecais.cal transplants.
Resources
-
Leia sobre o recent study on improving faecal transplants with a personalised approach na página de notícias do EMBL.
-
Para mais informação sobre transplante fecal, visite o Johns Hopkins Medicine website.
-
Para saber mais sobre transplante fecal, leia o artigo ‘Medicine’s dirty secret’ publicado na revista Mosaic.
-
No seu livro “A vida secreta dos intestinos”, a cientista alemã e autora best-seller Giulia Enders apresenta as descobertas mais recentes sobre o nosso sistema digestivo, e em particular sobre a microbiota intestinal:
-
EGiulia Enders (2015) A vida secreta dos intestinos. Lua de Papel ISBN: 978 9892330549
-
Para perceber a nossa aversão a cocó, leia o artigo ‘Why do humans hate poo so much?’ da BBC Future.
Review
Cocó é um tema de conversa divertido entre estudantes e o tópico “nojento” dos transplantes fecais pode fazer despertar neles o interesse por processos metabólicos e fisiológicos. Este artigo é relevante em ciências médicas, mas também pode ser usado para fazer a ligação a tópicos de outras ciências como microbiologia ou ecologia.
Bartolome Piza, CC. Pedro Poveda, Ilhas Baleares, Espanha